Stella F.. 22/03/2023
Resenha/Resumo
Escravidão (volume III)
Laurentino Gomes - 2022 / 592 páginas - Globo Livros
Cheguei ao final da excelente trilogia “Escravidão” do autor Laurentino Gomes. Foi uma grande viagem ao longo dos séculos, tratando de todos os envolvidos com essa brutal violência contra outros seres humanos.
O volume III tem como subtítulo: Da Independência do Brasil à Lei Áurea.
O autor é um verdadeiro contador de histórias e através de sua escrita didática e acessível, relembramos muitos fatos esquecidos, conhecemos alguns que não prestamos atenção na escola e desfazemos alguns ensinamentos que tínhamos como certos, mas que eram compreendidos erradamente. Um autor e pesquisador atento, sempre mostrando dados estatísticos, mas não só. Sabemos pequenos casos particulares, interessantes, que talvez fiquem mais gravados na memória dos que outros menos anedóticos.
O primeiro capítulo vai abordar os importantes eventos em torno da assinatura da Lei Áurea, depois de toda uma pressão por anos, chegou-se a um acordo, que deveria ser o melhor a ser feito. Vemos todos os preparativos para a cerimônia, as festas realizadas em todo o país, o processo de votação, quem votou a favor, contra ou se absteve e sobre a vaquinha de todo um país, dos mais pobres aos mais abastados para dar à Princesa Isabel a caneta de ouro incrustada de diamantes para assinatura da lei, que ao final do livro, no capítulo sobre Isabel, será mais bem desenvolvido e com mais detalhes. "A julgar pelas palavras de Isabel, a abolição não seria uma conquista dos abolicionistas e dos próprios escravos que, nos anos anteriores, passaram a se rebelar e promover fugas em massa. Era, na verdade, resultado de "admiráveis exemplos de abnegação da parte dos proprietários", em especial os barões do café, nata da aristocracia escravista que até então o Império recompensava com títulos de nobreza e outros privilégios." (pg. 44)"
Estamos agora com D. Pedro I a caminho do Ipiranga, para o dia do Fico. Aqui vamos conhecer muitos barões do café, que recebiam sesmarias, em troca de apoiar a coroa, além de comendas. E tudo girava um torno da escravidão.
Logo em seguida, Os Esquecidos, os próprios escravos, vão ser tratados como lixo, uma carga que deve ser eliminada, esquecida, de tal forma, que não se lembre do fato de que foram necessários. O que fazer com eles? Devem ser educados, para ter dignidade, e ficar no canto deles continuando a servir os brancos. Surgem muitas teorias, mas nenhuma resolução de fato. Começa- se a querer embranquecer o Brasil com a vinda de imigrantes.
Muitos decretos foram assinados com a Inglaterra, se comprometendo a acabar com a escravidão, principalmente em relação ao tráfico de escravos. Navios eram autuados pela Marinha Britânica, estabelecia-se um tribunal misto, mas muitos conseguiam burlar os decretos e havia, em alguns casos, conivência dos próprios britânicos, fazendo parte do esquema. Novos decretos eram lançados, e seguiu-se assim por muito tempo. Os decretos eram feitos, desrespeitados, esquecidos, e fazia-se outro com mais algumas exigências. A burocracia era tanta, que o navio era multado e o dono o perdia, mas devido às falcatruas, muitas vezes retornava ao próprio dono, pintado e com outro nome, ou outra bandeira. E os Estados Unidos vão entrar na brincadeira, porque nunca deixaram a Inglaterra controlá-los. “Em 15 de setembro de 1845, no auge do tráfico ilegal de africanos escravizados para o Brasil, nada menos do que 21 empresas britânicas com escritório no Rio de Janeiro passaram um atestado de idoneidade a um dos maiores traficantes do país, o português Manoel Pinto da Fonseca. (pg. 130)"
Em “Honoráveis Beneméritos” conhecemos grandes traficantes negreiros, que após ganhar bastante dinheiro com a escravidão, tornam-se senhores de bem, grandes beneméritos, tendo bustos em sua honra tanto no Brasil quanto em Portugal. Fundam bancos, ajudam hospitais, fazem parte de Irmandades, e esquece-se que viveram do tráfico de pessoas. Até acontecer, em 2020, um caso de reivindicação da retirada de uma estátua da frente de um hospital em Salvador, que não foi retirada. "As aparências, aqui mais uma vez enganam." (pg. 135)
As fazendas cafeeiras são um convite a um passeio pela região de Paraíba do Sul e Werneck, e deu vontade de conhecê-las, apesar de saber de como foram adquiridas, através da escravidão, de comendas, que não eram hereditárias e através de trocas de favores.
Ao longo do “Império Escravista” conhecemos alguns abolicionistas, como o escritor Joaquim Nabuco, com suas muitas obras sobre o assunto. Além de estrangeiros, que apesar de serem "contra" a escravidão, eles mesmos possuíam um plantel de escravos. "A escravidão era um fenômeno onipresente e universal na realidade brasileira. [..] Tudo dependia do trabalho em regime de cativeiro. o governo imperial brasileiro era, ele próprio, um grande senhor de escravos." (pg. 177)
Nos anúncios de venda, compra e aluguel de escravos, havia uma série de exigências, principalmente características físicas, porque ter escravos, muitas vezes, era garantia de poder, a possibilidade de tomar dinheiro emprestado, eram herança, podiam ser vendidos para pagar dívidas, podiam servir como dote, podiam ser alugados e podiam servir como soldados. Mas, como diz o autor sempre de maneira excelente na abertura de todos os capítulos: "Negros escravizados carregavam tonéis de água e dejetos de esgotos, transportavam pessoas, puxavam carroças, vendiam comida, serviam de médicos e curandeiros nas esquinas e em barbearias precárias nas quais se cortavam o cabelo e a barba dos transeuntes, mas também se receitavam remédios e se aplicavam ventosas e sanguessugas com o objetivo de "purgar" o sangue de impurezas e maus humores causadores de febres, inchaços, dores e outras doenças." (pg. 189)
Então vamos passear pelo Valongo, um local muito importante no Rio de Janeiro, principal porto de chegada dos escravos na cidade. Escondido por muito tempo, ficando em uma rua meio escondida no centro da cidade, foi claramente desvendado em uma reforma de um casarão, onde se encontraram muitos corpos sem identificação. Hoje tornou-se um Instituto dos Pretos Novos, na Rua Pedro Ernesto. O autor, vai criticar ainda a inexistência de um Museu nessa área do Rio de Janeiro, já que instituições semelhantes existem em outros países. Ressalta que os museus não são apenas locais de passeio e entretenimento, mas também de estudo e reflexão. "Esse local assombrado pelas dores da escravidão por muito tempo foi de propósito mantidos no esquecimento. Embora a existência do cemitério de escravos fosse conhecida de historiadores e da literatura sobre a cidade do Rio de Janeiro, durante décadas sua exata localização era ignorada nos mapas de ruas e nos guias turísticos." (pg. 212)
Toda história tem dois lados, e a maioria dos relatos são uma visão do branco sobre a escravidão São muitos relatos, apenas um negro teria escrito sua biografia, mas ainda se discute a autenticidade da obra: Mahommah Gardo Baquaqua.
O baiano Francisco Félix de Souza, que era o maior traficante de escravos para o Brasil na primeira metade do século XIX, era o Amigo do Rei. Sua história se entrelaça com o Daomé, o Rei Guezo, e ele foi tão importante que recebeu do soberano do Daomé o título de Chachá, honraria hereditária, semelhante a um vice-rei. Não tive como não me reportar ao excelente livro “Um Defeito de Cor” de Ana Maria Gonçalves, que acabei de ler, e que fala da relação de Kehinde com o Chachá e seu enterro com muita pompa e sacrifícios humanos e muitas amazonas. Além do Chachá conhecemos a rainha do Daomé, Nã Agontimé, que foi vendida como escrava pelo próprio filho Adondozan, e fundou A Casa das Minas no Maranhão, um espaço diferente, com muitos mistérios, e que até hoje existe, e é tombado pelo IPHAN, mas está caindo aos pedaços. No livro já citado, ela foi um personagem muito importante.
Tomamos conhecimento do tráfico negreiro em Angola, e que após a independência, tratou de esconder um passado que não queriam lembrar, destruindo prédios, instituições, grandes monumentos. “No romance Barroco Tropical de 2009, o autor Agualusa vai falar disso no seu personagem Bartolomeu Falcato. Agualusa vai dizer que Luanda é um espaço ferido, afetado pela imposição de uma nova ordem, na tentativa de reescrever o passado, perpetua mecanismos de exploração e exclusão herdados da época da escravidão”. (pg. 274)
Entramos então nas diferentes revoltas pelo país, principalmente a Revolta dos Malês, Sabinada e outras. Os baianos passaram a ser malvistos. Quando havia intercâmbio de escravos entre as diferentes regiões do país não aceitavam baianos. Criou-se um edital de conduta dos escravos para saírem na rua e muitos foram deportados para a África. Devido a essas revoltas, vários fazendeiros começaram a escrever Manuais de melhor convívio com os escravos, para continuar com eles nas fazendas sem rebeliões, sem brigas e castigos, ou seja, dar um pouco de dignidade a quem merecia.
Tivemos um episódio bem interessante na Baía de Paranaguá (PR) com canhões velhos e um cruzador britânico, que causou um incidente diplomático sério e que eu não tinha conhecimento. Sempre aprendendo coisas novas.
“No Limbo” vai tratar dos alforriados que viviam entre a escravidão e a liberdade, mas viviam no limbo sem saber o que fazer. "Chamados de 'libertos', 'livres' ou 'emancipados', eram, em sua maioria, africanos importados clandestinamente depois da proibição do tráfico. Havia também escravos libertados pelos governos central e provincial em condições especiais, como, por exemplo, por serviços militares prestados em épocas de conflito. Legalmente, não eram mais cativos, mas, ao mesmo tempo, nunca chegariam a conquistar a autonomia plena. Em vez disso, continuaram de fato no cativeiro até o fim de suas vidas." (pg. 332) Havia um vácuo jurídico.
Sabemos sobre o Apogeu e Queda do Império e quais as crises que o fizeram ruir, tudo agravado pelo final da Guerra do Paraguai e das doenças de D. Pedro II. E o fim da escravidão só ia sendo empurrado com a barriga, criando-se mil argumentos para deixar o tempo resolver.
Surge então o Movimento Abolicionista, com importantes figuras como Luís Gama (autor que conheci em 2022), Joaquim Nabuco, André Rebouças e José do Patrocínio, com descrições detalhadas sobre sua biografia, obra e ideias sobre o movimento. As lojas maçônicas tornam-se locais de encontros de abolicionistas.
Com o movimento crescendo, o primeiro estado a libertar os escravos foi o Ceará, seguido do Amazonas. Os fazendeiros não satisfeitos com essas abolições pontuais, enviam petições ao governo contra isso, pedindo uma posição mais clara ao Império.
Ainda houve um trato do Império Brasileiros com os Confederados americanos, após estes perderem a Guerra da Secessão, em troca de asilo. Eles trariam tecnologia para colonização e aperfeiçoamento da lavoura. Nesse capítulo reaprendi sobre essa guerra e seus motivos (tinha uma lembrança errada) e vou tomar conhecimento de um projeto antigo de colonização da Amazônia com os escravos trazidos pelos confederados (ao final surgiu a Libéria onde eles colocaram os escravos.
E o embranquecimento da população volta à baila, com projetos de imigração, principalmente de italianos, para trabalhar nas lavouras do Rio Grande do Sul, através de um incentivo aos imigrantes e seus descendentes. Os anti-abolicionistas pensavam no embranquecimento da população, propondo até um cruzamento entre as várias raças para em 5 gerações a população de cor preta sumir. Mas, alguns imigrantes se revoltaram, porque estavam sendo tratados como escravos brancos, e o governo teve que rever os acordos.
Com as alforrias, os fazendeiros desesperados querem a manutenção do trabalho escravo em troca de alforrias, e os escravos já com a liberdade em mente, fogem em massa, e há a criação da primeira favela em Cubatão, onde foi fundado um quilombo. O Exército foi envolvido no retorno de fugitivos às fazendas, envolvendo até a Princesa Isabel no desvio de função.
Ao final temos uma pequena biografia da Princesa Isabel, seu casamento, sua insegurança em relação a estar nesse lugar, substituindo o pai em várias ocasiões, suas cartas, seu casamento, e o próprio evento da Lei Áurea, e tudo que estava por trás desse ato tão adiado. A Lei Áurea foi assinada e entendemos o que resultou ou não dela. Foi um ato importante, mas sem programação do que seria a vida dos escravos depois da assinatura. Não havia um planejamento por parte do governo imperial e depois pelo governo republicano. Os ex-escravos foram deixados à deriva, sem saber como proceder, como arranjar emprego, como viver. Primeiro foram andando sem rumo, comemorando, e as pessoas, foram dizendo que eles eram baderneiros, que algo deveria ser feito. Aos poucos como não havia jeito, foram retornando às fazendas, e trabalhando novamente nas mesmas por um salário irrisório, e tudo ficou como antes. "Na falta de mudanças estruturais, sobraram nas fazendas alguns curiosos malabarismos semânticos. Os antigos alojamentos e senzalas de escravos passaram a se denominar "dormitórios de empregados ou camaradas". Na ala feminina, [..] "quartos de empregada" e "dormitório de libertas". Os feitores foram chamados de "apontadores" e não usavam mais o chicote, mas armas. (pg. 519)
O autor vai terminar o livro falando da queima de arquivos por parte de Rui Barbosa, que fez o serviço incompleto, possibilitando hoje muitos estudos importantes sobre uma época triste e ainda presente, A Escravidão.
Adorei!