Ronaldo.Ruiz 11/03/2023
Um mestre também nos contos
Sou suspeito para falar sobre Alan Moore, pois eu o considero o maior roteirista de histórias em quadrinhos de todos os tempos. Leio tudo o que encontro dele desde a primeira vez que li Watchmen, após muito tempo tentando evitá-lo por preconceitos religiosos, pelo fato de ele se autoproclamar mago.
Se arrependimento matasse… Enfim.
Porém, a antologia de contos “Iluminações”, publicada pela editora Aleph, é o meu primeiro contato com sua ficção em prosa. E o homem não me decepcionou. Sei que ele ainda tem outras duas obras nesse gênero “A Voz do Fogo” e “Jerusalém”, que desejo muito ler no futuro.
Nesta coletânea, o autor experimenta diversas formas de narrar, buscando todas as possibilidades que a ficção em prosa e o formato do conto podem oferecer, da mesma forma que ele já havia explorado as potencialidades que a linguagem das HQs possui. Por isso, cada conto é extremamente original.
As histórias abordam temas muito caros a Moore, como a questão do tempo e espaço, o sobrenatural, a literatura beat, histórias em quadrinhos, nostalgia e críticas sociais. Fiquei me perguntando como alguém tão recluso como ele, que nem mesmo assiste TV, pode saber tanto sobre a nossa sociedade contemporânea.
Os gêneros dos contos também são diversos. Temos horror cósmico, fantasia e bastante humor em suas páginas. Moore usa estilos de escrita diferentes. Ele vai de um texto mais complexo, cujo significado é mais difícil de penetrar, até uma escrita mais leve e informal.
Até mesmo nos agradecimentos, que tenho certeza que muita gente não lê, Moore consegue prender nossa atenção. Por meio deles, ele nos conta um pouco como surgiram os contos do livro. No final, ainda há uma entrevista muito boa que o escritor concedeu ao jornalista Ramon Vitral, em que ele fala sobre assuntos pertinentes aos tempos que vivemos.
A seguir, analiso um por um os contos de “Iluminações”:
Lagarto Hipotético
Som-Som é uma meretriz em um prostíbulo chamado Casa Sem Relógios. Ela foi deixada lá pela mãe quando ainda era criança. Seus clientes são feiticeiros e, para não contar seus segredos, Som-Som passou por um procedimento em que a liga que une os lados direito e esquerdo do cérebro foi cortada. Além disso, ela recebeu uma máscara de porcelana que deixou apenas a parte esquerda do seu rosto à mostra – uma imagem que me causou bastante estranheza a princípio. Dessa forma, as únicas coisas que Som-Som consegue expressar em palavras são memórias de antes do procedimento, por mais que tente falar outra coisa.
Ela é testemunha de um romance trágico entre dois moradores da Casa Sem Relógios: um ator muito talentoso chamado Foral Yatt e uma mulher trans, Rawara Chan, que deixa o lugar para seguir uma carreira bem-sucedida de atriz. Quando Rawara aparece novamente na Casa Sem Relógios para uma visita, Foral, que ficou muito magoado com sua partida, vai aos poucos roubando a identidade dela, de forma bastante abusiva.
Em seu retorno à Casa Sem Relógios, Rawara dá a Foral um presente que, para mim, é uma das melhores imagens do conto: o lagarto hipotético. Como ela explica, se trata de um brinquedo para o intelecto, que consiste em uma esfera que pode ter ou não um lagarto hibernando eternamente dentro dela. Pareceu-me ser uma metáfora para a condição de Som-Som, uma vez que, por ela não conseguir usar a linguagem, é impossível saber o que se passa em seu íntimo. Ou ainda uma metáfora para as intenções de Foral.
Neste conto, Alan Moore usa um estilo um pouco mais rebuscado do que os demais, mas nada que atrapalhe o entendimento da história. Há uma reviravolta no final, mas que, pelo menos para mim, já era previsível.
Nem Mesmo Lenda
Sem dúvida, o melhor conto da coletânea. O enredo é bem simples. O Cisan (Comitê para a Investigação Surrealista das Alegações dos Normais) está reunido para discutir os novos rumos da organização. Em vez de procurar vampiros e fantasmas, seu líder sugere buscar criaturas que nunca foram vistas, as quais ninguém sabe como são. Isso acaba chamando a atenção de uma comunidade de entidades invisíveis que decide intervir.
Porém, a estrutura que o autor usa para narrar a história a torna um grande exemplo de originalidade. O conto se desenrola em dois tempos intercalados, sendo um deles destacado em itálico, técnica muito semelhante a que Ernest Hemingway utiliza no conto “As Neves do Kilimanjaro”. Dessa forma, Alan Moore prepara o terreno para um plot twist de explodir a cabeça.
Local, Local, Local
Uma advogada chamada Angie é a última pessoa na Terra. Enquanto as previsões do Apocalipse se confirmam surrealmente acima de sua cabeça, ela está indo entregar uma propriedade – nada mais, nada menos do que o nosso mundo – ao seu novo dono, um sujeito muito gente boa chamado Jê (sim, é ele mesmo).
Jê é um cara descolado. Veste uma camiseta onde está escrito “Posso estar velho, mas pelo menos vi todas as bandas que prestam…” (quero uma dessas!), usa mullets, gosta de séries e fuma cigarro eletrônico. De vez em quando fala uns palavrões também.
Os dois passeiam por onde um dia já foi o Jardim do Éden (que curiosamente fica na cidade inglesa de Bedford) no momento em que os anjos do Céu e as hordas de Lucífer se enfrentam. Mas, como Jê comenta, tudo é muito burocrático, apenas para cumprir um contrato. Como se fosse uma luta livre da WWE, sabemos quem é do bem e quem é do mal, e como a batalha vai terminar. Por isso, Jê não está nem aí para o que está acontecendo.
Durante a conversa, ele faz uma proposta para Angie que, talvez, possa chocar alguns leitores mais puritanos.
Narrada de uma forma leve e despojada, esta história me fez rir muito.
Leitura a Frio
Esta é uma história de terror e suspense, mas que também tem algumas pitadas de humor.
Rick Sullivan é um médium charlatão. No entanto, ele não se vê assim. Para Rick, seu trabalho é justificado pelo conforto que ele proporciona às pessoas que perderam seus entes queridos. Ele acredita que essa é a sua missão divina na Terra.
Tudo vai mudar quando um homem chamado David, cujo irmão gêmeo morreu, entra em contato com Rick. Apesar de não ter muita certeza de que seu irmão Dennis aprovaria o que estava fazendo, David marca um primeiro encontro com Rick.
Antes de conversar com o cliente em potencial, Rick vasculha as redes sociais de Dennis, a fim de conseguir material sobre como era a vida pessoal dele, para fingir que está recebendo mensagens do além.
Rick descobre que Dennis era uma pessoa extremamente cética. E, apesar de ter consciência de que nunca recebeu uma única mensagem do mundo espiritual, essa falta de fé o deixa bastante irritado.
Em um estilo de relato bem lovecraftiano, o conto é narrado em primeira pessoa, como se o protagonista estivesse conversando com o leitor informalmente. Há uma reviravolta surpreendente no final. Preste atenção nos detalhes!
O Estado Altamente Energético de Uma Complexidade Improvável
Durante um femtossegundo antes do Big Bang (que pode ter durado milhões de anos), surge uma espécie de cérebro consciente de sua existência. Com o tempo, ele foi criando extensões que lhe permitiram ter sensações e sentimentos, os quais foi catalogando como uma tabela periódica. Essa consciência se autonomeou Pamperrégio.
Em sua jornada de descobertas, Pamperrégio encontra outro cérebro. Ele desenvolve extensões nele e se apresenta como o criador do universo, onisciente e onipotente. Esse outro cérebro também tem consciência e Pamperrégio o chama de Glynne.
Glynne acredita em tudo o que Pamperrégio diz, inclusive na sua teoria “Ter-mais-dinâmica”, a qual consiste na crença de que o universo está sempre progredindo para o melhor.
Pamperrégio começa a desenvolver desejo por Glynne e os dois passam a ter um relacionamento amoroso. Mais para frente, eles encontram outros cérebros conscientes. Surgem os primeiros casos de preconceito e até mesmo uma universidade, onde Glynne vai ensinar a essas outras consciências as crenças de Pamperrégio.
Mas, vai chegar um momento em que Glynne não vai mais suportar o autoritarismo de Pamperrégio.
Esse foi o conto mais desafiador para mim. Não que eu não tenha gostado. Achei-o bom. Mas tive muita dificuldade na leitura por causa das abstrações e imagens surreais da origem do universo. Alan Moore também usa bastante adjetivos pomposos e advérbios, que deixaram a história mais complicada de imaginar.
Iluminações
Neste ótimo conto, Alan Moore critica a mania cada vez maior da nostalgia. De acordo com esta história, ao contrário do que ficamos devaneando, se o passado fosse revivido, as coisas não seriam melhores. Na verdade, o mundo se tornaria um pesadelo.
O protagonista é um homem de meia-idade que acabou de se separar da mulher. Seus filhos já são crescidos e seus pais estão mortos.
Após encontrar um velho álbum de família, ele decide ir até um lugar turístico onde se recorda ter passado momentos muito bons com seus pais na infância.
Porém, ao chegar lá, ele percebe que tudo está mudado. Até mesmo as coisas que se tornaram melhores o incomodam. Ainda assim, o personagem insiste em seu passeio, pois há resquícios do local da sua infância em meio a nova paisagem, que fazem parecer que ele ainda existe em algum lugar.
A princípio, pensei que este conto fosse o primeiro “realista” da coletânea. No entanto, conforme acompanhamos as andanças do protagonista, vamos sentindo um clima estranho, semelhante ao das ruínas da cidade do conto “A sombra de Innsmouth”, de H.P. Lovecraft. Aliás, a cidade onde se passa esta história tem o sugestivo nome de Welmouth.
Os parágrafos com lembranças do protagonista são intercalados pelas ações do presente. As duas linhas do tempo vão ficando cada vez mais confusas e a coisa só piora quando o personagem vai ao parque de diversões Pleasureland.
O que se pode saber a respeito do Homem-Trovão
Com quase 300 páginas, este conto está mais para uma novela. Nele encontramos outro alvo das críticas recorrentes de Alan Moore: a indústria de histórias em quadrinhos de super-heróis dos Estados Unidos.
Enquanto em Watchmen os super-heróis são usados pelo autor para construir uma sátira ao gênero, aqui Moore faz críticas violentas às pessoas que produzem as revistas.
Quem conhece pelo menos um pouco da história dos comics vai encontrar diversos paralelos com a realidade. De uma forma não linear, o conto cobre desde o surgimento dos super-heróis, com contrabandistas de bebidas durante a Lei Seca se tornando os grandes donos das editoras, até a febre dos filmes e séries dos dias atuais, passando por fatos históricos como a caça às bruxas do Macarthismo e a invasão do Capitólio.
Existem algumas referências a pessoas, editoras e personagens reais: Sam Blatz é o Stan Lee, Joe Gold é Jack Kirby, a American é a DC, a Massive é a Marvel, o Homem-Trovão é o Superman e o Rei Abelha é o Batman. É impossível não ficar tentando adivinhar quem é quem enquanto vamos lendo. Fiz até algumas pesquisas na internet para descobrir as referências.
Existem dois personagens que meio que protagonizam o conto. Worsley Porlock é o editor-chefe da American e Dan Wheems é um dos roteiristas da editora.
Porlock assume o cargo após a estranha morte de Brandon Chuff durante um jantar em um restaurante. Embora esteja chocado com a passagem do colega, ele não consegue esconder a empolgação de se tornar editor-chefe.
Enquanto Porlock cada vez mais se afunda nos vícios da indústria dos quadrinhos, Dan Wheems procura seguir um caminho diferente depois da morte de Chuff. Ele percebe que as HQs de supers não o prepararam para a perda de alguém, bem como para outras coisas da vida real. Então, assim como Alan Moore, Wheems decide tentar se esquecer dos comics e se aproximar da literatura.
Moore usa bastante experimentalismo neste conto. Algumas passagens são narradas em diferentes formatos, como roteiro de HQ, interrogatório, fórum de internet, sessão de psicanálise, crítica de cinema e entrevista “pingue-pongue”.
As críticas à indústria norte-americana de quadrinhos de super-heróis são inúmeras: exploração de artistas e roteiristas; roubo de propriedade intelectual; falta de criatividade; fãs sem talento transformados em profissionais do mercado; leitores mais preocupados com os personagens do que com a estrutura narrativa das histórias; infantilização de adultos; colecionismo; contribuição na ascensão de líderes políticos autoritários; e por aí vai.
Em alguns momentos, acho que Moore exagera, especialmente ao mostrar os fãs e profissionais como pessoas extremamente decadentes. Mas entendo que essa é a forma que ele encontrou para deixar suas críticas mais ácidas. Esse exagero torna alguns trechos estranhamente engraçados. A gente acaba rindo de situações que, se pararmos para pensar, não deveríamos achar graça nenhuma. Ainda mais que uma ou duas delas aconteceram mais ou menos daquela forma na vida real.
Por outro lado, acho que o autor também mostra algumas coisas boas que os quadrinhos podem proporcionar, como grandes amigos que podemos fazer por causa dos gibis, sejam à distância ou pessoalmente em uma convenção.
Foi impossível não me emocionar ao ver a forma como Porlock, em sua infância, lia os quadrinhos para se esquecer por um momento a separação de seus pais. Ou como sua primeira convenção o tirou da solidão, ao encontrar outros garotos desajustados socialmente, que compartilhavam da mesma paixão. E esse evento ainda lhe deu o sonho de trabalhar com algo que ele realmente amava.
Luz Americana: Uma avaliação
Por meio de um texto acadêmico, principalmente através de notas de rodapé, conhecemos a história de um escritor beat fictício chamado Harmon Belner. O estudo também é, obviamente, de uma autora inventada: C. F. Bird.
O texto de Belner analisado é sua obra-prima, o poema Luz Americana. Conforme vamos lendo seus versos, após uma introdução explicativa, sabemos das influências do autor, seu comportamento e relacionamentos conturbados. O principal deles é com outro escritor, Connor Davey, um grande admirador de seu trabalho.
Temos ainda um vislumbre da cena beat, principalmente, na cidade de San Francisco. Moore usa referências a autores clássicos do gênero, como Jack Kerouac e Allen Ginsberg, bem como as pessoas que os rodeavam – uns “santos marginais” – e acabavam virando inspirações para seus textos. E ainda os locais frequentados pelos beatniks na cidade.
Moore utilizou uma forma bastante diferente para escrever esse conto. Assim como a maioria das histórias do livro, há um plot twist no fim, e o escritor se vale da estrutura narrativa que está usando para armá-lo.
E, Enfim, Só Para Dar Cabo do Silêncio
Dois condenados estão caminhando lado a lado. Um deles vai tagarelando sozinho até que o outro, chamado John Halper, acaba desistindo de ficar calado e começa a falar também. O principal assunto é descobrir quem o primeiro personagem é.
Este conto é totalmente narrado por meio de diálogos. Através deles, o leitor vai recebendo aos poucos as informações da história, como detalhes a respeito do caminho que os dois estão percorrendo (que, aliás, é bastante bizarro); o motivo pelo qual eles foram condenados; e a época em que se passa o conto (durante o reinado de Ricardo Coração de Leão, na Inglaterra).
Pode ter sido tudo culpa minha, mas demorei para entender a revelação deste conto. Precisei ler mais de uma vez.
site: https://marcenarialiteraria.art.blog/2023/03/11/resenha-14-iluminacoes-de-alan-moore/