Lisa 21/02/2024
Um mar de sabedoria
Abdulrazak Gurnah não é o primeiro negro a ganhar o nobel, nem o primeiro africano a fazê-lo, mas é o primeiro refugiado a conquistar a honraria e isso importa. Em sua escrita, Gurnah, nascido em Zanzibar e fugido de lá ainda jovem buscando asilo no mesmo país que gerou os problemas que o fizeram precisar sair de sua terra natal, ironia essa que não deixa escapar, revela os paradoxos da vida e quebra a dicotomia dos padrões. "O mesmo portal de onde haviam saído as hordas que foram consumir o mundo e para o qual fui me arrastando a fim de pedir que me deixassem entrar. Refugiado. Em busca de asilo. De compaixão."
Em A Beira-mar, o autor inicia a narrativa com um protagonista frágil e vulnerável, nos faz empatizar com o senhor indefeso e incauto que busca proteção no Reino Unido. Esse senhor não tem história ainda, é um velho se fazendo de confuso, mas automaticamente o lemos como sofrido, como vítima. E então a história se encorpa e Gurnah nos confronta com as várias facetas que tais personagens possuem, sendo tanto vítimas como algozes de suas histórias e de outros. Reforçando a sua ideia de que nenhum refugiado chega de mãos vazias, traz consigo sua história, suas dores, suas conquistas, sua memória. Não é uma folha em branco a ser reescrita, mas alguém com identidade e passado.
Ao abordar o lugar do refugiado, sendo ele mesmo um, Gurnah chama atenção para as relações de poder dentro disso. Seu protagonista, ao encontrar com outros refugiados, dois homens brancos europeus, é menosprezado por eles. Por que no fim, por mais que suas histórias sejam parecidas, por mais que carreguem o mesmo selo, Omar é ainda um africano preto e assim sendo, menos digno de empatia, de dignidade que um irmão branco europeu.
Não há binariedade aqui, Gurnah garante a quebra da visão maquineísta de bom e mal. Seja com os personagens que nos apresenta ou com a própria história de colonização. Se por um lado, ele constrói um debate decolonial criticando o Império inglês e doutrinação sofrida pelo seu povo, também levanta todo o avanço advindo disso. "Era como se eles nos houvessem recriado, e de tal forma que não tínhamos outra possibilidade senão aceitar." "O bem deles, no entanto, era impregnado de ironia. Falavam-nos sobre a nobreza de resistir a tirania nas salas de aula e depois instituiam toques de recolher após o por do sol, ou mandavam os panfletários para cadeia por sedição. não importa, eles realmente limpavam os riachos e aperfeiçoavam o sistema de esgotos e traziam vacinas."
Abdulrazak Gurnah é um nobel e é fácil perceber o porquê. Sua escrita é limpa, tem uma nostalgia dolorosa que escorre de suas páginas, a maneira como escreve e costura as narrativas criadas com tanta suavidade encanta. A didatica com que embasa seu livro ao inserir tamanho contexto histórico e críticas politicas relevantes até hoje e anos a frente é de imensa naturalidade. No fim, bebi dessa leitura sem respirar. Infelizmente ainda sem edição no Brasil, tendo sido enviada ineditamente pela TAG, mas que torço para que mude e logo.