Marc 07/03/2023
Os textos na contracapa da edição nos dizem que o autor fez uma crítica feroz aos EUA e ao conceito de heróis, em especial Capitão América e Hulk. “(...) desconstrói as origens de super-heróis e ataca os monstros que o complexo industrial dos Estados Unidos gerou”. Até entendo que se trata de um texto para atrair o público, mas é muito mais do que isso: serve para diagnosticar algo muito sério em nossos dias.
Se o leitor acreditar no que está dito ali, vai pensar que se trata de uma HQ com a única intenção de criticar os EUA. Como militares aparecem, sendo os responsáveis pela criação do super-homem, haveria uma crítica ao belicismo norte-americano, que não liga para a tragédia humana que cria mundo afora enquanto busca mais e mais poder. Poderíamos dizer, ainda para complementar essa visão, que os diversos cientistas nazistas que os americanos aceitaram em seu país depois da guerra são a prova de que a única razão para o combate contra a Alemanha era que o país ameaçava o equilíbrio de poder e não pelo conteúdo do nazismo em si, afinal, os cientistas foram recrutados e prestaram serviço durante décadas. Isso tudo está ali, mas tem um ligeiro problema: dizer isso faz confundir realidade e fantasia. Até que ponto o complexo industrial dos EUA criou monstros? Que eu saiba, nenhum Hulk tem andado por aí destruindo cidades e atirando tanques para fora da atmosfera terrestre. Embora a crítica à anistia de cientistas nazistas seja importante, ela precisa ser pesada e colocada em seu devido lugar, como o autor fez e vou mencionar mais adiante.
Não se trata, portanto, de uma crítica à Marvel e seus heróis — me sinto até ridículo dizendo isso. O que temos aqui é uma reflexão bastante aguda sobre a violência e como ela espalha suas consequências pela vida das pessoas. Como a vida se torna uma sucessão de tragédias, que vão se aprofundando, gerando mais violência, mais sofrimento, mais agonia. Até que a vida termina em dor. Esse ciclo evolutivo da violência, como se fosse uma praga que se alastra de pessoa para pessoa, gerando cada vez mais dor e mais decepção, sem possibilidade de reversão do quadro.
A história vai descobrindo cada vez mais no passado a origem da violência, e isso é, sem que o autor faça alarde, uma demonstração de como um historiador trabalha, olhando os problemas do presente e retornando, até onde os documentos, testemunhas ou qualquer outro indício permitirem investigar. Isso me agradou bastante, porque mostra como uma tragédia humana de grandes proporções, como o nazismo, vai desembocar em pequenas tragédias pessoais, que, por sua vez, tem potencial para se tornar outras tragédias mais amplas. E, através da descrição do dia a dia de uma família normal, se chega até esse ponto, porque o pai do personagem principal lutou na Segunda Guerra Mundial e foi muito afetado por tudo que viu os nazistas fazerem com pessoas inocentes só para tentar criar um verdadeiro super-humano. Não estou contando nada de importante na história, apenas comentando sobre aquilo que todos já sabem, mas que é a chave de entendimento.
É por que o autor faz esse movimento de escavação do passado, contando a história em sentido contrário a maior parte do tempo, que depois pode concluir de forma abrupta, como muitos reclamaram. O final realmente não agrada, mas não por ser muito rápido. O problema em relação à resolução da história é justamente esse: resolução. Imagine passar umas 350 páginas falando sobre a capacidade do mal se enraizar nas pessoas, passando de umas para outras, reinventando-se e conseguindo sobreviver até mesmo ao “combate” das pessoas que conseguem verdadeiramente amar as outras, para concluir que é possível dar um fim a esse ciclo (ainda mais com uma solução inevitavelmente discutível)? Se o autor tivesse aceitado a conclusão que suas premissas e desenvolvimento o forçavam a aceitar, teríamos uma HQ extremamente sombria e de tom amargurado. Creio que ele percebeu onde isso o levaria e acabou a história fazendo o que menos se poderia esperar depois de tanto realismo: nos lembrou que estamos diante de uma HQ e elas podem se dar ao luxo de recorrer à fantasia, mesmo que a vida não possa. Esse acaba sendo o defeito de uma história que em tudo o mais é brilhante. Mas eu compreendo o autor, porque não é fácil ter a coragem de olhar a realidade e não buscar algum tipo de refúgio. No fundo, todos nós fazemos isso diversas vezes ao dia, oscilando entre a aceitação da verdade e a esperança de uma solução improvável (quando não, impossível) para todo o nosso sofrimento e o do mundo.
Olhando por esse aspecto, essa renúncia, ganhamos até mais um elemento para refletir sobre essa característica do mal. Às vezes as coisas são terríveis de se olhar, mas a cada vez que não conseguimos organizar nossa visão de mundo para compreender esse mal e incorporar em nossa compreensão, só podemos negar e esperar que as coisas se resolvam magicamente. O problema é que depois a realidade fica como que nos espetando, pois a “realidade” substituta que criamos não é capaz de lidar com todos os elementos da vida e eles nos cobram uma atitude e resolução. Eis como o pai de Bobby fica depois da guerra. O mal que ele testemunhou era grande demais e ele não tinha elementos para lidar com isso. Daí vermos todo o ressentimento que ele passou a sentir em relação à vida.
Em relação aos cientistas nazistas que foram perdoados pelos americanos, acredito que qualquer que seja o argumento que se escolha para defender essa atitude, as vítimas das atrocidades e seus familiares devem se sentir atacados. Não há como negar que se tratou de uma manobra puramente estratégica, deixando qualquer moralidade de lado. Infelizmente a vida está repleta de exemplos desse tipo. O que não se pode deixar de lado é que embora isso apareça na HQ, reduzir seus escopo a essa dimensão é bobagem. Ela fala do mal, de como ele se espalha, sendo transmitido de uma pessoa para outra, de como nossas ações nem sempre geram bons frutos e como é difícil romper essa cadeia. Tanto é verdade, que não ocorreu ao autor uma solução realista. Parece que ele foi avançando no trabalho e não conseguiu descobrir um meio de resolver sua história.
Há uma outra possibilidade, que considero muito mais atrativa. Ele simplesmente teve medo de concluir sem uma salvação. Estamos falando de um artista que trabalhou décadas com histórias de heróis. Ele se habitou a criar finais felizes, talvez tenha se tornado até mesmo automático, quem sabe. Não se pode dizer que seja um final feliz, mas é o menos grave de tudo que poderia acontecer. Em certo momento nós podemos captar aquela atmosfera elétrica que antecede as grandes tragédias, sejam elas pessoais ou históricas, e creio que o tom fica tão pesado que o autor recuou e escolheu um final que pudesse dar algum alento às pessoas. Há conserto para o mal do mundo, evidentemente, mas passa longe do que ele mostrou no final da história.
De qualquer maneira, a leitura provoca um grande impacto. O normal é esperarmos uma história de monstros, uma releitura de Frankenstein, do Hulk, etc. Mas nos deparamos com uma história sobre uma família completamente destroçada pela Segunda Guerra. Uma história de amor, alegria e inocência que foi massacrada pela maldade de uma época terrível. E a conclusão que me parece justa é dizer que em graus variados, todos foram vítimas do grande mal desencadeado naquele momento. A grande sacada do autor foi mostrar que mesmo depois do fim da guerra o mal continuava impactando a vida das pessoas. Nesse sentido, a história acaba sendo bastante realista.