Krishna.Nunes 26/02/2024Drama familiar sobre traumas de infânciaO livro é um drama pesado e muito triste sobre como um trauma pode afetar toda uma vida.
Depois de 23 anos afastada da família, a protagonista, uma mulher de mais de 50 anos, se vê enredada numa disputa por duas casas de praia que seus pais doaram para as duas filhas mais novas. Isso tiraria dela e do irmão mais velho (que já têm filhos e netos) o direito de usufruir daqueles imóveis. Apesar de prometerem uma divisão igualitária dos bens, os pais demonstram um evidente favoritismo em relação às duas filhas mais jovens, o que faz os dois filhos mais velhos se sentirem injustiçados.
Quando as irmãs mais novas reivindicam o direito às casas de praia por estarem mais presentes na vida dos pais, acabam trazendo à tona antigos traumas e abrindo velhas feridas que os dois irmãos mais velhos nunca conseguiram curar - afinal havia um motivo para eles terem se mantido afastados.
A narrativa faz muitas idas e vindas, utiliza elementos de fluxo de consciência e chega até a ser um tanto repetitiva para dar ao leitor um vislumbre do estado de confusão mental de uma vítima de abuso: a incerteza constante, a vergonha, o medo intenso, o questionamento de suas próprias faculdades mentais, a culpa, a dúvida, as crises de pânico e o dilema das falsas memórias. A narradora acaba acusando o pai de um crime hediondo, mas para as irmãs, e especialmente para a mãe, é mais conveniente negar que aquilo tenha acontecido - afinal, admitir que algo ocorreu seria o mesmo que assumir que ela mesma falhou no papel de mãe, de proteger a filha, e ser obrigada a acabar com o casamento, já que seria inaceitável continuar vivendo com um abusador.
Para a filha, as tentativas da mãe e das irmãs de manterem contato como se nada tivesse acontecido, e sempre buscando uma conciliação, viriam a ser tão traumatizantes quanto a própria recordação do abuso. Não ter a sua história reconhecida aprisiona a vítima numa condição de incessante martírio e impede que as feridas cicatrizem. Já o abusador conta com o silêncio da vítima, mantido através pavor constante, para preservar as imagens de bom cidadão e de família harmoniosa. Por outro lado a narradora comete vários erros lógicos, tira conclusões apressadas, se enrola em contradições e fica retroalimentando o próprio vitimismo, o que impede que sua própria vida siga adiante.
O lançamento dessa obra na Noruega levou os leitores a notarem as inegáveis semelhanças entre a família do livro (que a escritora diz ser completamente ficcional) e a família real da própria autora. Isso fez a procura pelo livro crescer e suscitou muitas polêmicas, especialmente quando a família da autora afirmou que ela utilizou muitas comunicações pessoais entre eles - cartas, emails, mensagens de texto - como fontes para o livro. Assim, acusaram a escritora de ter extrapolado os limites de se inspirar na vida real, de expor os parentes e de caluniar o patriarca da família. Tudo isso levou a irmã da autora, que não é escritora profissional, a lançar seu próprio livro sobre uma mulher que sofre por ter uma irmã narcisista e mentirosa que espalha calúnias, num desejo de atrair para atenção para si, causando o colapso da família.
Independente de quem esteja dizendo a verdade, esse livro tem discussões muito complexas, traz questionamentos filosóficos interessantes, aborda bastante a psicanálise e levanta uma importante reflexão sobre as dúvidas que são colocadas sobre as pessoas que alegam terem sofrido violência dentro da própria família.