Carlos Souza 03/02/2023
David, Charles e Edward: "Três gerações, contextos e muitas reflexões".
Bom... Por onde começarei... Dessa vez, não irei repetir o tempo todo o risco de ler um livro da Hanya, até porque acho que ela é bem conhecida e o conteúdo que ela aborda, na maioria das vezes, também é alvo de muita discussão entre os leitores.
Primeiro de tudo, não é possível escrever uma resenha que dê conta de tudo que é abordado pelo livro, então, mais uma vez, acho que é importante destacar que: É NECESSÁRIO PROCURAR PELOS GATILHOS DO LIVRO ANTES DE LER!! Bom, depois disso, sinceramente, acredito que dona Hanya Yanagihara segurou sua mão e não praticou seu lado mais gráfico e desconfortante. Ao meu ver, em "Ao paraíso" temos um livro polêmico, mas completamente diferente de tudo que encontramos em "Uma Vida Pequena". E como é um traço da autora, (in)felizmente temos alguns pontos discutíveis e passíveis de problematizações, mas que no geral, causam mais movimentações cognitivas positivas que negativas.
Em relação ao ritmo de leitura e escrita da obra, indiscutivelmente, mais uma vez, a criminosa da Hanya deu o nome, mesmo sendo um livro de 720 páginas, ele tem uma fluidez muito boa e uma escrita que prende, além de arcos e diálogos de primeira. Os personagens, como sempre, são assustadoramente reais e são cheios de dilemas verdadeiros, os quais representam o caráter contraditório da natureza humana, ou seja, são pessoas cheias de defeitos e que defendem suas visões de mundo, práticas, interesses e sonhos... Antes de falar daqueles sujeitos que estão citados no título, acho que, é preciso fazer duas menções. Primeira, acho que o que mais incomoda os leitores da Hanya é que, ela, diferente de outros autores e autoras, fala o que quer e o que, eticamente e moralmente falando é questionável, mas que passa vez ou outra na cabeça de todos nós. Segundo, acho correto dizer que, muitas vezes, dona Yanagihara, tenta reproduzir vivências que não possui ou não aceita que certos posicionamentos são problemáticos, visto que ela produz para outros e somos construídos, em parte, por nossas relações sociais. Contudo, e tendo em vista os dois lados das discussões que cercam a autora, ainda sim, leio os livros dela e eles são memórias e traumas que sempre irei acessar para repensar meu lugar no mundo e o sofrimento humano. Até porque, concordo com a Eliane B, quando diz que certos tipos de produções literárias servem para causar incomodo e cada um deve ter autonomia para selecionar o que serve ou não.
DITO TUDO ISSO, VAMOS AO LIVRO.
PARTE I - Século XIX.
Na primeira parte, acompanhamos David, neto de um importante banqueiro e filantropo que se encontra em uma crise existencial, visto que ele carrega o peso do nome de sua família e tenta também descobrir qual o seu lugar no mundo, e como irá viver os próximos anos. Nesse momento da vida, seu avó propõe a ele um casamento arranjado com um homem mais velho, viúvo e de boa família, com o qual ele começa a se relacionar. E, assim, vemos, por exemplo, algumas autoreflexões e inseguranças do personagem e daqueles que o cercam. Entretanto, conhecemos Edward, um homem sem prestígio, músico e apaixonante que entra na vida de David. Sinceramente, das três partes, essa foi minha favorita, porque não sabemos no que acreditamos, eu já aceitei que nunca decidirei qual dos possíveis desfechos é o verdadeiro e sobretudo, jamais quero saber quem era o verdadeiro Edward. Eu só espero que o David tenha sido feliz. Não irei desenvolver o arco para além disso, porque não quero dar muitos spoilers. Em síntese, o primeiro enredo fala sobre: família, desejos e decisões.
PARTE II - XX
Na segunda parte, acompanhamos mais um David, que se relaciona com um homem mais velho e endinheirado chamado Charles, cujo relacionamento pode ser visto de forma vertical, pois eles possuem visões diferentes e conhecimentos não compatíveis, tanto por trajetória quanto por origem e possibilidades que lhes foram das ou não ao decorrer da vida. Aqui, podemos dizer, temos um romance que permeia tudo, sexualidade, raça/etnia, idade e classe social. É muito interessante por isso, acompanhar os pensamentos de David e como ele tenta de forma sucedida ou não, encaixar-se no mundo de Charles, ao mesmo tempo que enfrenta, em segredo, resquícios de seu passado e reflete sobre seu pai, sua identidade e a maneira que vive sua vida em comparação aos pensamentos transmitidos a ele por sua avó que, dentre muitas coisas, pensava ou buscava uma identidade havaiana que fizesse jus ao legado de sua linhagem e ao local que ela acreditava que eles deveriam ocupar. Preciso dizer que, essa parte possui dois capítulos e não irei discutir o segundo que, principalmente, aborda a trajetória do pai do David, porque, no geral, ele foi aquele que mais me irritou, tudo porque o Edward dessa geração é um lunático militante que fala uma série de coisas problemáticas e que desconsidera completamente o princípio da etnogênese cultural, do multiculturalismo e da multiculturalidade, isso para tentar produzir uma utopia datada. Em síntese, a segunda parte fala sobre: identidade, origem e vida.
PARTE III - XXI
Na terceira parte, e mais doida de todas, temos um mundo destruído por pandemias virais, na qual acompanhamos Charlie, uma cientista que carrega o legado de seu avó, esposa de Edward e que, em determinado momento, conhece um homem chamado David, basicamente, nesse mundo temos um governo autoritário que controla e verifica tudo. O próprio caos, ao mesmo tempo que acompanhamos Charlie, vemos também através de cartas, o que ocorrer décadas atrás com seus dois avós e seu pai, anos antes de se iniciarem os surgimentos das doenças virais, e como seu avo foi um dos principais responsáveis por elaborar os modelos que formariam o mundo que ela vivência, mas ao mesmo tempo, orquestrou uma série de coisas para garantir sua sobrevivência e mesmo de forma questionável, a própria sobrevivência da humanidade. Outra questão, e, talvez, a principal é o relacionamento dela com seu marido, visto que eles vivem uma dinâmica extremamente insensível e distante, mas ao mesmo tempo com muito companheirismo. Complicado de entender? Sim, mas é assim que rola. O mais babado é quando são revelados alguns segredos e nós percebemos o motivo por trás de tal distância... É o segundo melhor arco. Em síntese, a terceira parte fala sobre: liberdade, segurança e amor.
Por fim, sinceramente, eu gostei muito mais de "Ao Paraíso" que de "Uma Vida Pequena", mas ainda sim, eu não recomendo uma leitura sem preparo psicológico, pois mesmo sendo menos gráfico, ele ainda possui inúmeras discussões sensíveis e gatilhos. Vai de cada um, e, se você decidir ler, esteja avisado, nenhum livro da Hanya te deixa ir sem um preço e, normalmente, esse preço são várias noites sem dormir ou em crise pensando no mundo e na escuridão que existe no interior de nossos seres.