Luis.Fernando 23/08/2023
Insônia e lantanas na estreia de Rafael Martins
O romance de estreia de Rafael Martins acompanha a saga de Humberto em uma noite de insônia. O porteiro, em busca de descanso antes de assumir o turno de trabalho, não encontra tranquilidade. A cada interrupção, o relógio sentencia um horário, que são os títulos dos capítulos da primeira parte da obra. O mostrador digital atormenta o personagem. E não é só ele.
Quem já enfrentou a insônia conhece a aflição. Na medida em que as horas avançam, nos pressionamos ainda mais. Tensão que faz a mente fervilhar: vamos nos alternando em batalhas inglórias, como remoer entreveros ancestrais, pensar em respostas para discussões hipotéticas, ou programar a ceia do próximo Natal. E quanto mais os pensamentos se inquietam, diminuem as chances de sermos seduzidos pelo sono. O que é contraditório e angustiante na insônia: a certeza de que deveríamos dormir nos afasta ainda mais do sono.
Seria perfeito se o cérebro viesse com um botão de desligar. Opção que até existe, na verdade. Mas não são todos que contam com anestesistas na mesa de cabeceira.
Em "O segredo das lantanas", a serenidade de Humberto é cortada pelo advento de diversos fantasmas. A intimidade indiscreta do casal da residência vizinha faz com que ele sinta desejo e inveja. As memórias da infância, passada na mesma casa em que reside com a esposa e a enteada, também alvoroçam seus sentimentos.
A construção segura da narrativa, sobretudo nessa primeira parte, é um mérito de Rafael Martins. O clima de suspense se apresenta a cada capítulo. Afinal, o título da obra não é propaganda enganosa. Há, de fato, um segredo nas lantanas - e, se você não sabia que lantanas são um gênero de plantas, pega na minha mão que somos colegas na ignorância botânica.
Na medida em que a leitura avança, nos preparamos para ouvir um vidro estilhaçar, uma figura enigmática romper a escuridão ou alguma tragédia acontecer. Os fantasmas do passado que surgem, porém, são o que há de mais assustador no romance. E estendem seus tentáculos até o presente.
A narrativa em primeira pessoa possui essa qualidade de nos envolver numa cumplicidade com o interlocutor. Afinal, nada é mais invasivo do que ter acesso aos pensamentos de alguém. O personagem narrador, logo percebemos, possui um caráter duvidoso. Despreza a esposa, está desencantado com a vida particular e profissional. Suas ambiguidades tornam ainda mais curiosa a experiência de conhecê-lo.
Os traumas vão sendo rememorados na medida em que o sono não chega. E não são poucos. A ausência paterna, a mãe enigmática, o avô violento, a sedução pela tia… não são poucos os problemas que consomem Humberto.
A segunda parte do livro se dá em terceira pessoa. É pela ótica de Carolina que acompanhamos o desenrolar dos eventos apresentados anteriormente. E situações sutilmente insinuadas se tornam mais evidentes no decorrer do texto.
Nessa metade final, "O segredo das lantantas" segue em um ritmo ainda mais acelerado. De forma objetiva, os pequenos capítulos vão resolvendo alguns dos mistérios relativos à constituição familiar e à personalidade de Humberto.
Formado em Direito e com atuação profissional na área, Rafael Martins estreia bem na literatura. O segredo das lantanas é uma leitura dinâmica e agradável. O texto cumpre as demandas do gênero suspense e a narrativa é bem construída. O livro saiu pela Editora Patuá.
Resenha pulicada originalmente no site Digestivo Cultural
site: http://digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=4778&titulo=Insonia_e_lantanas_na_estreia_de_Rafael_Martins