alineaimee 10/05/2023Escritora-leitora?Tal como não me lembro das palavras de todos os livros, sobram-me apenas fragmentos de sensações e ideias de nossa vida a dois. Certa vez li que a memória das pessoas é como uma obra de arte. Inventamos à medida que acumulamos. Acumulamos muito sem poder acessar tudo. Como os livros. Começaram a se multiplicar de tal maneira que precisamos usar o sótão para guardar parte deles. Minha coleção de dedicatórias ficou em um baú em marchetaria, presente dele, e nunca mais cresceu. Não é possível guardar tantos livros, não é possível reter tantas lembranças. Seria insuportável reter todo o sofrimento e o amor na memória.?
Dentre as muitas metáforas que Jorge Luis Borges utilizou para se referir ao universo está a do livro ? de todas, a imagem que mais se lhe aderiu. Escritor-leitor, o contista argentino se empenhara em criar uma obra onde a literatura fosse tematizada enquanto um grande abismo de páginas que se continham, se replicavam, se espelhavam.
É num universo de mesmo tipo que adentramos ao ler o livro de estreia na ficção da educadora carioca Alice Casimiro Lopes. ?Vidas sem margens?, publicado pela editora Oito e Meio em 2022, é uma coletânea de vinte contos que nos estende um espelho para que vejamos refletido aquele que perpassa o livro em diferentes camadas: o texto. Nestas histórias, há tanto escritores quanto leitores ? de livros, de situações, de pessoas ?, e a autora se revela, ela também, uma escritora para quem a invenção literária enquanto tema nunca se perde. Além do diálogo com outros escritores, como Elena Ferrante, Dino Buzzati e John Wiliams, há personagens que escrevem, que editam, que revisam, que leem, assim como há os que sonham, os que lembram, os que deliram, em outro nível de leitura/escritura.
Acompanhando tantos legentes e escreventes está uma multiplicidade de desejos: irrealizados, proibidos, obsessivos, condenáveis, inusitados, surpreendentes, cuja potência levará seus detentores, se não a ultrapassar as tais margens anunciadas no título, a assediá-las.
Dividido em quatro partes ? ?A dois?, ?A três?, ?A sós? e ?Em família? ? o livro nos apresenta diferentes versões de interioridades e trocas, cuja riqueza faz saltar das entrelinhas a impressionante capacidade de observação da autora. Lopes extrai momentos singulares e fascinantes da vida mais modesta, o que soma mais um sentido à ausência de margens. Restrito nas bordas da página, o texto da autora, na verdade, reflete imensidões: personagens nuançados, densos, descritos com uma generosidade que em lugar de limitá-los em moralismos e determinismos, sustenta-os na riqueza de suas ambiguidades.
[ Resenha publicada em instagram.com/alineaimee ]