viúvas de sal

viúvas de sal Cinthia Kriemler




Resenhas - viúvas de sal


5 encontrados | exibindo 1 a 5


Leila de Carvalho e Gonçalves 27/03/2023

Diferentes Trajetórias Femininas
?Mulheres que desapareceram pela violência estão gritando.
As vozes de mulheres desaparecidas estão ecoando.
Eu canto com essas vozes.?
(Kim Hyesoon Poeta sul-coreana)

Viúvas De Sal é o terceiro romance de Cinthia Kriemler e gira ao redor da fictícia Cooperativa de Pescadoras de Porto do Xaréu, no litoral de Pernambuco.Liderada por Tonha, seu propósito oferecer às associadas um meio de sobrevivência a despeito da morte do companheiro e do amparo pouco efetivo do Estado.

Aliás, ?viúvas de sal?, como elas são tratadas, remete a história da mulher de Ló que consta no Gênesis. Jamais nomeada e de mãos vazias, esta mulher é obrigada a fugir de Sodoma onde vive sem olhar para trás, entretanto ela não consegue e é punida pela desobediência: transforma-se numa estátua de sal. No caso, trata-se de uma metáfora sobre a necessidade de vivenciar o luto e sua inviabilidade, pois é preciso seguir adiante.

Em suma, a narrativa gira ao redor de diferentes trajetórias femininas expostas a violência, resultado de uma realidade omissa que é produto do patriarcalismo e da misoginia. Uma temática universal que abarca mulheres ?silenciadas, expostas a traumas, abuso, exclusão social e alienação religiosa?, ?que aprenderam a conter a raiva, a revolta, a lágrima e a piedade?, como Binta, uma refugiada senegalesa, a arredia Sebastiana, a renegada Ciça, a silenciosa Josefa e Augusta ou Ivenkra cujo passado misterioso não a deixa em paz.

Paralelamente, o livro também aborda a corrupção endêmica, nosso folclore e a mutilação feminina (MGF), uma forma de controle do corpo da mulher. Não praticada e pouco conhecida no Brasil, ela afeta quase 200 milhões de mulheres ao redor do mundo e trata-se de um grave problema, em especial, na África, podendo causar problemas físicos, mentais e até levar a morte.

Sou leitora assídua de Cinthia, uma escritora que consegue entrelaçar dor e beleza com raro talento tanto em verso como em prosa. Sua escrita não é anódina, surge politizada e essencialmente feminista, o que a torna seminal não só para as mulheres, mas para quem admite rever conceitos, posicionando-se diante deles.

?A decisão de voltar para o mar está tomada. A cooperativa precisa retornar à sua finalidade original. No primeiro ano da pandemia, a venda de marmitas, doces e máscaras de pano artesanais foi essencial, mas não rendeu o bastante. O dinheiro da pesca fez muita falta. Foram meses longe dos barcos. Antes, por causa das manchas de óleo no litoral. Os peixes que não morreram foram contaminados. Depois, por causa do isolamento social imposto pela pandemia. Por fim, o governo atrasou o pagamento do seguro defeso, agravando ainda mais a crise. A maioria das famílias ficou na miséria. As viúvas sobreviveram ajudando-se umas às outras. Agora, com a reabertura da temporada de pesca, os barcos têm urgência de mar. Porque o mar é uma casa que não se abandona.? (Página 10)
Renata 13/11/2023minha estante
Suas resenhas são excelentes. Sempre penso que você é professora, devido aos seus textos excepcionais. Não sei se você já escreveu um livro, mas caso não o tenha feito, considere a possibilidade.


Débora 15/04/2024minha estante
Renata ela faleceu, tbm amava as resenhas dela.




Alexandre Kovacs / Mundo de K 16/04/2023

Cinthia Kriemler - Viúvas de sal
Editora Patuá - 108 Páginas - Capa de Roseli Vaz - Lançamento: 2022

O mais recente lançamento de Cinthia Kriemler é um romance com alguns temas recorrentes no estilo visceral de outras obras da autora, tanto na prosa quanto na poesia. Em Viúvas de sal, a violência contra o gênero feminino é perpetuada por uma rotina de ritos patriarcais e perseguiçao religiosa, mantendo as personagens presas a um destino cruel e inescapável, do qual apenas a morte pode representar um alívio. A ação é situada na fictícia Cooperativa de Pescadoras de Porto do Xaréu, em Pernambuco, uma organização que exerce na prática o conceito de sororidade para além dos discursos feministas, como destacado por Taciana Oliveria na orelha do livro, ou seja, uma alternativa à insuficiência de políticas públicas, espécie de irmandade, com base no afeto e na solidariedade, que salva essas mulheres de uma miséria ainda maior, decorrente da viuvez precoce e da exclusão social.

A narrativa é feita em primeira pessoa por Augusta dos Santos, uma forasteira, sobrevivente da violência e de tudo aquilo que deixou no passado: profissão de advogada, família e a própria história. Ela conduzirá o leitor ao longo desta saga de dor e resistência, vivenciada com as companheiras: Tonha, Ciça, Sebastiana, Josefa, Binta e Augusta, assim como muitos outros habitantes de Porto do Xaréu. A cooperativa foi criada por Tonha em 2011, "[...] Desamparada pela inexistência dos filhos que arrancou da barriga um a um. Marcada pelas ausências do pai e do marido, mortos no mar." É Tonha quem mantém as mulheres unidas na luta pela sobrevivência, tornando a cooperativa mais do que uma oportunidade de trabalho, na verdade um espaço de escuta e acolhimento que acaba tornando-as primeiro amigas e, depois, irmãs.

"É um cadáver pequeno. Trazido pela maré em seu hábito de fluxos. A nudez desonesta exibe a genitália tímida. Menina. Ou deveria ter sido. O corpo miúdo deitado na areia úmida lembra o de uma boneca desfeita. Silenciosa. Silenciada. Desampara, uma morte assim tão feia. Mas esse não é o primeiro corpo de criança que aparece na praia. É desde sempre que o mar acolhe os fardos da miséria. / Alívio. Nos rostos das mulheres que formam um círculo irregular ao redor da menina morta. Alívio. Uma fêmea a menos para crescer. Para morrer de fome, de abandono, de desvalia. Para se prostituir. Para se degradar. Para quebrar. Uma agressão a menos, um estupro a menos, um assassinato a menos. Alívio. Uma velha a menos para cumprir o calvário de solidão e de loucura. Uma lésbica a menos para ser odiada e ameaçada. Uma mãe a menos para chorar o assassinato das crias. Uma menina a menos para aprender submissão. Alívio. As mulheres no círculo sabem que é bom morrer." (p. 10)

Binta também é uma forasteira que se uniu à cooperativa, refugiada da África, Guiné-Bissau juntamente com a filha Mariama, ela fugiu da família para tentar evitar que Mariama sofresse a mesma brutalidade da infibulação, uma tradição no seu país natal que consiste na mutilação do clitóris das meninas: "Nas suas memórias, a gilete enferrujada, a mãe sujigando o seu corpo que corcoveava como um cavalo chucro, o sangue esguichando por entre as pernas. E as mulheres comemorando aquele horror com gritos primitivos e danças histéricas. Sem perceber que, enquanto o clitóris da menina Binta era mutilado, todo o resto dela também era mutilado. Identidade. Fé. Sanidade. Destruídos por uma lâmina. Quantos anos ela tinha? Cinco? Seis?"

Já Ciça, é uma vítima local do preconceito e perseguição religiosa. Após um casamento de quatroze anos com dois filhos, apanhando de um pescador violento que vivia bêbado e morreu numa briga de bar, ela decide refazer a sua vida com Eustáquia, mas as duas sofrem um verdadeiro linchamento público orientado pelo pai de Ciça, o pastor Ezequiel, líder religioso na comunidade, sendo impedidas de comprar na quitanda e no supermercado e tendo que lidar com as constantes pichações no muro da sua casa. "Antes que a manhã termine, ela vai ser presa. Por invasão e depredação. Na igreja de Ezequiel, a devastação será a prova da fúria dessa mulher que não aceita mais provocações. As pichações no muro, os gritos de madrugada, as fogueiras, as histerias berradas nos cultos. Chega."

"Manhã de domingo. Na igreja do pastor Ezequiel, os fiéis chegam aos lotes. Famílias de pescadores, trabalhadores do sindicato, comerciantes. Uma tropa barulhenta essa que vem se encontrar com o seu Cristo. Olhando para eles, a impressão é de paz. Mas as impressões não são confiáveis. Há presas e garras escondidas em cada sorriso, em cada gesto estudado de compunção e louvor. Um rebanho pronto a trucidar as carnes dos pecadores. Hoje, estão particularmente agitados. A notícia de que a filha do pastor virá ao culto para se desculpar publicamente pela destruição da igreja deixa todos excitados. Não vêm a hora de gritar e gesticular amaldiçoando a varoa imunda que se deita com outra varoa – essas as palavras que vomitam. Vão exigir da criatura sem preceito que seja arrependimento, capitulação, conversão. De joelhos. Vão exigir aos prantos. Aos berros. E o demônio será subjugado aos gritos de Queima, Jesus! Farejam o sangue do cordeiro. Vampiros sedentos. Planejam para Ciça a imolação." (p. 61)

Durante a pandemia as atividades da cooperativa precisam ser interrompidas e as mulheres procuram por outras formas de sobrevivência. Sebastiana retorna à prostituição, mas não consegue assumir a mesma indiferença ao uso do corpo, depois da experiência na cooperativa: "Malditas manchas de óleo! Maldita pandemia! Mas se não fossem esses filhos da puta que me comem, os meus filhos iam passar fome. Ela está ressentida. Já não consegue mais fazer o sexo automático de antes. Parar. Novamente. É tudo o que ela mais quer. Mas tem medo de que haja outra proibição de pesca, um acidente, uma doença, qualquer coisa. A vida da gente não vale nada, diz com desânimo."

Cinthia Kriemler nos apresenta novamente um romance com potência e originalidade narrativa, um estilo forte no qual a urgência de escrever sobre aquilo que existe de mais perverso, vergonhoso e bárbaro no comportamento humano, não compromete em nada a beleza e o lirismo do texto.

"Sebastiana não consegue dormir. Sentada ao lado de um barco emborcado na areia, pensa no que tem sido a sua vida. Um cansaço desconhecido toma conta dela. Não é o corpo. É a cabeça que está exausta. Antes, ela não pensava. Porque trepar com os homens era a única opção. Agora, ela pensa demais. O tempo todo. Se cobra, se recrimina, se odeia. Por isso se afastou de Tonha. Não precisa que ninguém aponte a ferida aberta supurando dentro dela. Um corpo, enquanto moeda de troca, é ferramenta de sobrevivência. Fazer uso de si mesmo requer ausências. De culpa, de remorso, de medo. É preciso ser um instrumento de trabalho. Como os alicates, os pincéis, as panelas, as vassouras, os bisturis. Que cortam, pinçam, limpam, alimentam. Um corpo não é o último recurso. É um deles. Às vezes, o mais eficiente." (p. 100)

Sobre a autora: Cinthia Kriemler nasceu no Rio de Janeiro e mora em Brasília. É autora, pela Editora Patuá, de Tudo que morde pede socorro (Romance, 2019); Exercício de leitura de mulheres loucas (Poesia, 2018); Todos os abismos convidam para um mergulho (Romance, 2017) – finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018; Tudo que morde pede socorro (Romance, 2019) Na escuridão não existe cor-de-rosa (Contos, 2015) – semifinalista do Prêmio Oceanos 2016; Sob os escombros (Contos, 2014); O sêmen do rinoceronte branco (Contos, 2020) e Do todo que me cerca (Crônicas, 2012). Publica textos e poemas em antologias e em revistas literárias.
comentários(0)comente



Elenara 20/03/2023

Impactante
Finalmente comecei a ler o último romance de Cinthia Kriemler II, viúvas de sal. Como todas as obras dela, é daqueles livros que a gente é envolvida não apenas pela história (ou histórias) mas pela construção da narrativa, a poesia das palavras e frases que fazem com que aquele tema, tão pesado da história crua de mulheres, cujas vidas e tragédias se entrelaçam, nos penetrem de maneira visceral, como a evolução de uma música onde os acordes vão crescendo em intensidade e sentimentos. Ainda estou na metade. E já altamente impactada.
comentários(0)comente



Alinne.Spagnollo 01/05/2024

Sobre sororiedade
"Viúvas de Sal" é uma leitura arrebatadora. Todas as reflexões são de grande teor poético, entretanto, quando a autora narra os fatos das mulheres, é de forma seca, com um vocabulário áspero, chulo. O livro nos traz a realidade de ser mulher em uma sociedade machista e patriarcal, mas longe de ser piegas.
comentários(0)comente



Beatriz2268 28/03/2024

Sinceramente um dos melhores livros que já li.
Uma ficção tão real. Todas nós temos um pouco de Tonha, Irenka, Bita, Ciça... mulheres que se transformaram depois de tantas violências.
Não tenho palavras pra descrever tudo o que senti lendo. Raiva, esperança, tristeza, alívio e principalmente, identificação.
Histórias de várias mulheres são contadas em tão poucas páginas, parece até impossível, mas a autora conseguiu detalhar de um jeito maravilhoso a vida de cada uma delas e assim nos conectar com suas histórias.
Me senti parte da cooperativa de pescadoras, acolhida.
comentários(0)comente



5 encontrados | exibindo 1 a 5