spoiler visualizarMiguel.Moreira 27/07/2023
Sarrasine - Honoré de Balzac
Sarrasine é uma novela que se passa entre os séculos XVIII e XIX com duas historias paralelas, sendo uma para cada metade do livro. A princípio é uma narrativa de uma personagem desconhecida, mas que sabemos ser um homem em uma festa. Há uma descrição sobre uma divisão de pensamentos entre a vida e a morte, que esboça tal ideia durante a estabilidade do narrador numa janela que faz divisa com uma vista para um jardim que mais se parece com um cemitério pela descrição, com espectros em uma dança macabra, simbolizando a morte, e uma casa lotada no meio da noite dançando uma "dança dos vivos".
A festa é de uma família rica e misteriosa, em que pessoas falam aos cotovelos especulando a origem de sua fortuna e seu passado. Os Lanty (sobrenome da família abastada) são: Marianina, uma bela jovem de 16 anos, desejada por todos presentes na festa; Filippo, irmão de Marianina, com uma beleza herdada de sua mãe, assim como sua irmã; Condessa de Lanty, uma mulher de 36 anos, de uma beleza implacável e extremamente atraente; Conde Lanty, um homem descrito como extremamente feio, porém rico.
Há uma velho misterioso, que quase ninguém sabe a seu respeito, mas que está sempre com a família Lanty. Há uma cena em que o narrador está numa sala com uma convidada, e este velho senta-se junto da jovem acompanhante, e neste momento há uma memória do tema do início, em que se divergem e convergem ao mesmo tempo a ideia de vida e morte. O homem acabado pela idade, e a jovem gozando de sua beleza e apavorada pela presença do velho; uma forma bastante abstrata de utilizar deste tema clássico da literatura universal. A primeira parte do livro acaba por aqui, com a dama questionando o narrador sobre tal homem misterioso, e exige a seu amigo que conte tudo o que sabe.
A segunda parte do livro é onde se dá o título do livro, mas o narrador conta a história de um tal Sarrasine, artista escultor francês, criado com os jesuítas e que vai para a Itália em sua maioridade e se apaixona por uma bela cantora de ópera chamada Zambinella, que com o passar da narrativa descobrimos ser um castrato, bancado por um cardeal da igreja para atuar no meio operístico, que na época era mal visto uma mulher cantar e atuar no meio, portanto as vozes agudas eram cantadas por castrati ou crianças. O arremate da narrativa é uma tragédia, mas a ideia ou talvez a crítica principal seja a figura do castrato.
Acabei vendo algumas resenhas e percebi o quão alienadas são algumas pessoas, pois disseram ser um livro que aborda "questões sexuais e de gênero", o que claramente um escritor do séc XIX não pensaria em abordar com a mente de um revolucionário do séc XXI. A figura dos castrati é algo bem polêmico na história da música, e certamente causara muitos problemas psicológicos e fisiológicos em garotos preparados para cantar com voz de contralto ou soprano.
Dedico esta crítica a todos aqueles que acreditam que Sarrasine é um livro que romantiza a questão de gênero (o que por si só já é um absurdo, e pela época do autor podemos ter certeza de que esse jamais foi o ponto da crítica). Há sim, uma crítica na obra, mas é sobre a questão de se fabricar um castrato, que o autor nos apresenta como algo financiado por alguém do clero, pois não era permitida a atuação de mulheres no meio musical ao público.
Zambinella tem um aparente desejo por Sarrasine, e isso poderia ser um amor homoerótico, mas numa fala sua após ser descoberto castrato, ele diz: "Ah, não me mateis. Não consenti em vos enganar senão para enganar meus camaradas, que queriam rir."; aqui é o ponto crucial para a ideia de um romance entre as duas personagens.
Algo bastante cruel era a vida de um castrato, pela ideia do livro, Zambinella era apresentada como uma mulher, e isso certamente causava algum tipo de repressão social, ou até os próprios questionamentos de "gênero", mas é algo que devemos pensar que foi imposto em prol da ópera. A criança foi castrada e iniciada ao canto para se tornar um cantor, em nenhum momento foi uma escolha da criança se tornar um castrato; talvez a crítica seja justamente essa, a de forçar uma criança a se tornar algo que ela nem sequer tem ideia do que seja, algo que podemos trazer para o séc XXI, a tal ideologia de gênero. A crítica pode ser apontada para a sociedade que não permitia mulheres na ópera, mas não há uma coerência se pensarmos no autor que escreveu; se tivesse sido escrito no séc XX talvez poderia ser a crítica dos sonhos para os progressistas. A questão de identidade de gênero está ausente nesta obra, portanto não procuremos pelo em ovo.
O livro termina com a revelação da origem da fortuna da família Lanty e a identidade real do velho (masculino), que o narrador revela ser Zambinella, que é tio-avô de Marianina.