Luis 22/12/2023
O Milagre cantante
Há pouco mais de 20 anos, a historiografia da música brasileira ignorava de forma solene os verdadeiros cantores populares, na acepção plena da palavra. Os reis dos programas de auditório, das rádios AM, dos clubes de subúrbio e dos circos de interior, inexistiam em letra de forma tanto nas obras acadêmicas quanto nos trabalhos mais jornalísticos e destinados ao público em geral. Não que a Bossa nova e a chamada MPB, protagonistas desses registros, não merecessem a honraria, mas a história seguia contada parcialmente. A mudança desse cenário teve como marco a magistral obra de Paulo César de Araújo, “Eu não sou cachorro não”, lançada em 2002 e, desde então, seguimos, felizmente, em constante resgate de figuras únicas da nossa música, a despeito de terem passado décadas ao largo da atenção da crítica. Nesse final de 2023, o tarimbado escritor, jornalista, roteirista e produtor, André Barcinski, traz mais uma contribuição fundamental nesse movimento, com a publicação de “Tudo Passará: A vida de Nelson Ned, o Pequeno Gigante da Canção” (Companhia das Letras, 2023).
O mineiro de Ubá, terra de Ari Barroso, mais do que um dos maiores cantores que o país já conheceu, era um personagem único : desbragadamente romântico, portador de nanismo (o único de sua família), desde cedo se destacou pela incomum capacidade vocal. Em seu primeiro emprego, como office boy da fábrica de chocolates Lacta, logo foi deslocado para pequenos shows sobre as Kombis que ofertavam o produto pela grande Belo Horizonte. Seguindo o caminho de outros artistas da época, ganhou musculatura nos programas de calouros e outros musicais do rádio, até que chegou ao primeiro disco, lançado pela Phillips, e que no título e na capa explorava a sua baixa estatura (“Um show de Noventa Centímetros”). Essa primeira incursão no mundo fonográfico não renderia tanto em termos de vendas, mas Nelson foi cada vez mais se inserindo no circuito profissional, ganhando até um padrinho que muito o ajudaria ao longo da carreira, Chacrinha.
A virada na trajetória de Ned se daria a partir do encontro com o empresário Genival Mello, no final dos anos 60. Genival respondia pela carreira de alguns dos astros mais populares da música da época, como Wanderley Cardoso e Moacyr Franco, além de jovem promessas como Antônio Marcos e Cláudio Fontana. Nelson se juntaria a esse time, tendo inclusive dividido shows e um apartamento com os dois últimos. Boa parte do encanto do livro de Barcinski está na descrição dessa fase com as “aventuras” dos três amigos na antessala do sucesso.
Com a composição e gravação do clássico “Tudo Passará”, Nelson Ned vira de fato um nome nacional e, a partir da década de 70, após a sua participação em um festival de música Latina nos Estados Unidos, um verdadeiro fenômeno nos países de língua espanhola. Maior que Roberto Carlos, inclusive.
André Barcinski nos dá a dimensão da idolatria do cantor através de inúmeros episódios registrados em “Tudo Passará” : as multidões em aeroportos para recebê-lo, em muitos casos sem ter qualquer noção de como era Nelson fisicamente, a amizade com poderosos dentro e fora da lei, as apresentações em templos da música, como o Carnegie Hall e a multidão de discos vendidos. Nelson Ned estava no céu. Não demoraria a conhecer o inferno.
Por conta do nanismo, Nelson sofria com intensas dores nas articulações e frequentemente fazia seus concertos sob efeito de fortes analgésicos, incluindo morfina. Apesar disso, a fama e o dinheiro o jogaram numa roda viva para nenhum Keith Richards colocar defeito. Movido a sexo, drogas e canções românticas, o cantor se entregou a excessos inimagináveis que , aliados à mudanças significativas no mercado da música, a perda do empresário Genival Melo e o acometimento de um AVC e vários outros problemas de saúde, o jogaram em uma espiral de decadência irreversível. Tudo isso, relatado pela escrita sedutora de Barcinski que já deixa “Tudo Passará” na categoria de um item indispensável.
Um episódio, narrado na abertura do livro, ilustra bem a aura mitológica de Nelson Ned para seus fâs. O baterista Raimundo Vigna, um dos músicos que mais trabalharam com o cantor, ficava intrigado quando em vários concertos, mesmo em lugarejos pobres nos rincões da América Latina, uma verdadeira procissão de ambulâncias estacionavam próximas aos bastidores e Nelson, antes dos shows, entrava e sai delas em um ritual no mínimo inusitado. Certa vez, Vigna descobriu do que se tratava : enfermos pediam a Nelson um show particular que, em muitos casos, seria a última lembrança daqueles devotados fãs. Todos eram atendidos.
Para essas pessoas e, para tantas outras que o idolatravam, Nelson não era somente um artista. Era um verdadeiro milagre. Um milagre cantante, revivido nas páginas de “Tudo Passará”.