Gabriel 04/04/2024
Uma cacofonia de diferentes obscuridades
Nossa parte da Noite é um livro de horror/suspense que me lembro de ter comprado por um motivo bem especifico e torpe – no livro, dentre todos os acontecimentos, são inseridos elementos de arquitetura impossível, como a ideia da casa que é maior por dentro que por fora. Aquilo que parece comum ou ligeiramente estranho, ao longe, mas que por dentro é o abismo.
Sei que é um motivo bobo, mas foi um motivo bobo bem aplicado nesse caso. Valeu a pena. A ‘’noite’’, referindo a obscuridade do título do romance da escritora e jornalista Argentina Mariana Enríquez, é apresentada aqui numa narrativa rica – cultural, histórica e literariamente. Ainda que obscura em todos os contextos.
A história acompanha, em um longo recorte de tempo, a saga de uma família onde um Pai e um Filho, conectados ao sobrenatural de forma intima, tentam fugir de uma sociedade secreta que busca explorar essas habilidades. Cada capítulo aborda uma diferente perspectiva de personagem: o Pai, o filho, uma repórter, um médico que se depara com um caso completamente incomum, e etc e etc. Sendo cada um destes muito bem amarrados a saga da família como um todo.
Do ponto de vista cultural, o livro é recheado de elementos do ocultismo bem estudados, além de fazer referências diretas, explicativas e interessantes, a cultura e folclore tanto Argentinos quanto Tupi-Guarani – esse último foi uma grande surpresa pra mim, surpresa boa, não esperava.
A descrição de cenários também se apresenta impecável, quando em trechos na Argentina, quis pesquisar os locais mencionados tão grande era a riqueza de detalhes – assim como foi nos trechos em Paris.
A contextualização histórica também não fica para trás, o livro é situado, em parte, no período da repetitiva e quase sem fim ditadura Argentina, que durou quase 40 anos – se contar todas as vezes que o poder democrático foi brevemente restaurado pra, logo em seguida, ser destituído. Nesse contexto, a repressão está incrustada em diferentes e importantes atos do livro. Dentre outras obscuridades históricas, outra parte do livro se passa justamente no BOOM do HIV na Argentina – e aqui são descritas partes que me pegaram muito pela notável pesquisa que a autora fez para a construção da narrativa, sendo apresentados diferentes personagens LGBTQ+ nesse contexto e as batalhas travadas, e as vezes perdidas, nesse período.
A parte do horror se associa tanto a riqueza da narração quanto ao mix de elementos culturais, mitológicos e fictícios. São descritas cenas de horror sobrenatural marcantes pela vivencia de detalhes e inventividade da autora.
Minha única crítica ao livro se dá ao tamanho dos capítulos – a divisão acontece pouco nestes, o que resulta em capítulos muito extensos que poderiam ser melhor segmentados, ainda que fosse uma divisão no mesmo capitulo, em trechos entre as diferentes cenas, para uma cadencia de leitura mais fluida. Se você for na perspectiva de ‘’ler só até o fim do capitulo’’ pode acabar virando a noite (aconteceu comigo).
Bom, pelo menos você não vira parte da noite, como poderia muito bem acontecer, engolido por algo poderoso no escuro... Algo com unhas de ouro...