Jess.Carmo 07/02/2024
Outras formas de habitar quedas
Apesar de nos remeter ao abecedário de Gilles Deleuze, o alfabeto das colisões é colocado em desordem. A organização do alfabeto não é à toa. Para Safatle, a filosofia é a raiva do senso comum, ou seja, de como a experiência se configurou até agora. É por isso que toda filosofia tem um profundo desconforto em relação à linguagem, à uma certa gramática da vida. É uma ideia que está em toda obra do autor - para quem acompanha seu trabalho, sabe da insistência em pensar a gramática do sofrimento social, já que é por ela que podemos nos afetar ou não por determinados objetos -, mas que esse compilado de verbetes procura apresentá-la de forma menos acadêmica. Nesse sentido, o autor acertou na intenção de deixar uma obra para um público mais amplo, buscando responder mais a anseios políticos do que teóricos.
Quando sofremos, temos a impressão de que não conseguiremos viver se não acompanharmos a gramática naturalizada pelo mundo social. Sabemos que a inadaptação a essa gramática tem um preço brutal à vida do sujeito que está à margem dela. É por isso que não podemos fazer uma apologia à singularidade de forma imprudente. Não se trata de uma simples incapacidade do sujeito, mas "da violência de uma situação socialmente objetiva".
A análise, portanto, teria o papel de livrar essa singularidade de toda determinação patológica, já que "adaptar sujeitos a uma sociedade doente é apenas uma forma mais brutal de adoecê-los" (p. 42). Nesse sentido, a análise direciona o sujeito a não só assumir o seu sintoma, como fazer dele uma arma.
Entretanto, isso tem o seu preço. Tem o preço de aprender a cair, de reconhecer que em algum momento você vai se quebrar. Em algum momento vamos nos confrontar com algo que não controlamos e que não temos nenhuma boa resposta para lidar com isso. É por isso que os textos de ética costumam ser tão ruins. Quase todo texto filosófico ou psicanalítico sobre ética se arvora a dar boas respostas de como se deve agir no interior no interior da sua família ou como se deve amar. Os arautos da moral ou da ética do desejo mentem ao tentar dar essa resposta, simplesmente porque não há uma boa resposta para essas questões, já que elas exigem um tipo de linguagem que ainda não está disponível no campo da experiência. Além disso, eles retiram do sujeito a possibilidade que ele teria para lidar com essas quebras, retiram a possibilidade de reconhecer que existem outras vidas e outras formas de habitar quedas.
Reconhecer a singularidade em uma análise implica "construir a experiência de como esse desamparo é a condição para toda e qualquer emancipação possível". Ou seja, implica o sujeito reconhecer que não foi apenas ele que caiu e se quebrou, que isso é algo que diz de uma patologia ou de uma incapacidade cognitiva ou de uma falta de esforço. Implica o sujeito reconhecer que em qualquer escolha haverá a possibilidade de quebras, momentos em que ele perderá sua gramática.
Uma ideia importante para o autor é que é necessária uma outra forma de falar de si, uma forma que seja menos dependente da primeira pessoa do singular e que reconheça que "há momentos em que falar [...] com a voz de outros, é a única fala verdadeira, por indicar o que está em movimento de se tornar algo distinto" (p. 74). Acho que essa ideia marca todo o livro. Em alguns momentos o leitor sabe que o autor está a falar de uma experiência pessoal, mesmo que ela não seja descrita através de um "eu".
Enfim, apesar de ter muitos textos já publicados, mas com algumas modificações, esse é, para mim, o livro mais bonito do autor e um dos mais marcantes que já li. Acho que ler esses textos na forma em que o livro foi organizado me trouxe uma outra experiência com o seu trabalho. Difícil escolher qual é o melhor verbete, mas fiquei bastante emocionada com as letras V e Z.
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