Lucas 21/01/2021
A democracia numa encruzilhada: Uma abordagem acadêmica sobre o que a trouxe a este ponto
O século XXI tem assistido a incontáveis quebras de paradigmas. Se o advento do terceiro milênio trouxe avanços incomparáveis em termos de acesso à informação, é visível também a capacidade destes novos tempos em regredir-se em alguns pontos que, imaginavam-se, estarem totalmente consolidados na sociedade como um todo. O maior ensinamento que o século passado deixou à humanidade é a razão disso: a história do século XX mostrou ao mundo que intransigência, truculência, dedos em riste, muros, xenofobia, tanques nas ruas, entre outros símbolos, são nefastos para a sociedade. É surreal que até uns anos atrás ninguém pensava em muros para dividir países e hoje há pessoas que defendem essa "técnica"; em 2001, havia uma concordância geral de que a escravidão foi uma tragédia sem precedentes (hoje, apenas duas décadas depois, surgem ressalvas abonatórias quanto ao homem branco que foi buscar a "mercadoria" nos litorais da África). Por que o ódio vem vencendo a razão? Até onde isso vai?
O cerne por onde transitam todas estas alterações retrógradas passa pela democracia e seu declínio praticamente universal. Entender o desvirtuamento do processo democrático atual ajuda na compreensão dessa onda de ódio com elementos passionais que tanto define as relações humanas ao longo da última década.
Crises da Democracia, lançado no Brasil em 2020 pela editora Zahar e escrito por Adam Przeworski (1940-), cientista político polonês radicado nos Estados Unidos, trata de descrever esta crise sem precedentes na democracia como regime político. É, na verdade, mais um dos incontáveis livros, nacionais e internacionais, que tratam do tema e que encontram no meio atual vasto material para análise.
A obra de Przeworski tem uma peculiaridade, especialmente em relação à obra Como as Democracias Morrem (2018), dos norte-americanos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (também lançada no Brasil pela Zahar): ela oferece um texto mais acadêmico, com inúmeras citações a outros trabalhos. É um olhar mais técnico, portanto, e menos apaixonado para grandes acontecimentos ocorridos no passado que simbolizam os ruídos sociais que enfraquecem os regimes democráticos.
Basicamente, o autor descreve quatro desses acontecimentos: as dramáticas rupturas democráticas que ocorreram na Alemanha na década de 1930 (ascensão do nazismo) e no Chile em 1973 (golpe militar) e as crises democráticas contornadas institucionalmente, ocorridas na França (no final da década de 1950, com a participação de Charles de Gaulle (1890-1970)) e nos Estados Unidos (o escândalo de Watergate em 1974). Esta análise retrospectiva compõe a primeira parte de Crises da Democracia. Depois, Przeworski trata de analisar o momento atual das democracias, com gráficos, tabelas e uma infinidade de outras informações acadêmicas, algumas tratando de relacionar os eventos dramáticos citados às crises atuais, outras tratando de ilustrar a diferença conjuntural das épocas em que estas rupturas ocorreram com a atualidade. Isso conduz à última parte da obra, onde o olhar do autor predomina em relação às referências científicas e direciona-se ao futuro da democracia.
A tecnicidade geral do texto não é um entrave à fluência da leitura. Crises da Democracia discute todas as razões que podem estar enfraquecendo a democracia atualmente (como o demonstrado avanço universal das desigualdades sociais, a influência da economia no contexto político, as possíveis razões para o surgimento dos extremismos, entre vários outros aspectos) e a utilização de dados técnicos comprova que sim, o momento que o mundo atravessa carece de maior atenção. Mas, diga-se, a narrativa difunde várias nuances dessa necessidade, sem oferecer perspectivas mais conclusivas a respeito. Excetuando-se um prefácio especial que Przeworski escreveu para a edição brasileira, que expõe de forma contundente (até demais) as percepções do autor com relação ao cenário político contemporâneo do Brasil, as críticas no texto a nomes que utilizam práticas antidemocráticas são discretas. O presidente Donald Trump, por exemplo, um dos personagens mais odiados da mídia universal em todos os tempos (é uma constatação, não se discute aqui se isso é justo ou não), tem suas condutas criticadas de forma veemente, mas dentro de certos limites do bom-tom que caracteriza todo trabalho acadêmico.
A obra, portanto, não alimenta rivalidades, não é conclusiva na maior parte dos dilemas que são levantados, mas estes não são pontos negativos; pelo contrário, a ausência de vieses apaixonados e a preferência, percebida a praticamente cada página, por informações de caráter científico, trazem um caráter universal: todo leitor, independente de corrente política, deve ler esse livro com a certeza de que nenhuma de suas ideias será combatida efusivamente. A exceção é se este leitor não seja um adepto da democracia ou não saiba o que ela representa, aí um livro de história básico é mais urgente.
As informações que são apresentadas traduzem cientificamente as crises, não apenas as de democracia, mas de ódio e intolerância que o mundo vem passando. Como Przeworski ensina, a democracia não deixa de sustentar-se num conflito: correntes ideológicas diferentes, o governo contra a oposição, as eleições, as mídias e seus interesses, todos estes e outros personagens convivem num ambiente de trocas de poder. O executivo e o legislativo, ao mesmo tempo em que servem como palco destas incongruências, possuem uma função básica de garantir que estas contendas permaneçam na esfera institucional. O que está ocorrendo é um acirramento nefasto desses conflitos, que indicam que a crise, de uma forma geral, é mais ampla e não se restringe apenas ao regime democrático. Ao cidadão, cabe fiscalizar e participar de forma construtiva dessas discussões, e isso não é exercido abraçando seu político predileto e indo para a guerra ideológica com as abjetas armas da intolerância e do desrespeito mútuo.
A democracia não é perfeita, e Przeworski ilustra essa tendência por meio da relação desse sistema com as constituições dos países. Nos dias atuais, a democracia não se enfraquece de uma hora para outra, com bombardeios, invasões ou outras ocorrências cinematográficas: é um processo mais sutil, que até se utiliza de pequenas ações permitidas constitucionalmente. Sobram exemplos universais: um redesenho dos distritos eleitorais, obstruções burocráticas para a aptidão de votar, nomeações e trocas de juízes federais, indicação de amigos a superintendências de órgãos investigativos (algo bem familiar ao brasileiro...), entre outras medidas que são permitidas constitucionalmente, mas que, cumulativamente, ferem muitos princípios democráticos. Como a constituição é a primazia legal de todo um país e ela não está sendo ferida nessas ações, frequentemente as discussões acerca dessas práticas perdem força. É preciso um atento senso coletivo que perceba a ameaça destas condutas a tempo de agir dentro dos meios legais, e isso só se cria com instrução e informação confiável.
Crises da Democracia consegue gerar muitas outras reflexões, que precisam ser deixadas ao leitor. É um livro acadêmico, de leitura fluida e que traz por meio de dados científicos e pesquisas (instrumentos que são combatidos e que causam arrepios a determinados defensores da "cultura da ignorância" que existe atualmente) o quanto a democracia é frágil e, ao mesmo tempo, está em perigo nos últimos tempos.