Pam 01/08/2021
Corajoso, envolvente e assustadoramente atual.
As últimas palavras de Anne Brontë foram para sua irmã Charlotte "Coragem, Charlotte!" e em A Senhora de Wildfell Hall, publicado em 1848, vemos toda a coragem da Anne. Esse livro é uma obra que aborda diversos tabus e denuncia vários costumes e atitudes problemáticas da época, principalmente em relação ao machismo. Tudo foi relatado de forma tão crua e forte que o livro quase deixou de ser publicado após a morte da Anne, e só voltou a ser vendido numa versão censurada pela própria Charlotte Brontë. Hoje eu digo que isso provavelmente foi o que dificultou a fama da obra ao mesmo nível de outros livros das irmãs, porque é provavelmente o melhor: mais maduro, realista e belíssimo. Li a versão integral do livro e fiquei impressionada com a bravura da Anne de expor tantos problemas na classe alta inglesa sem floreios nem desculpas.
Acompanhamos no livro a chegada de uma mulher misteriosa numa pequena vila no interior da Inglaterra, a Helen. Helen acaba se envolvendo romanticamente com Gilbert, mas o amor entre eles é complexo devido ao passado conturbado da Helen. Já de cara, numa das primeiras cenas da Helen na vila, temos um diálogo fenomenal dela defendendo que meninos e meninas deveriam ser criados igualmente: meninas não são mais sensíveis nem meninos mais brutos. No livro outros personagens acham isso escandaloso, e creio que na época a recepção deve ter sido a mesma. Acho curioso ver que isso perdura até hoje, um livro publicado há quase 200 anos atrás traz questões sobre educação de crianças que até hoje estamos lutando para desconstruir.
Quando passamos a desvendar o passado da Helen, as denúncias ficam mais fortes. A Anne relata perfeitamente um casamento abusivo, com direito a (novamente) assuntos que até hoje vemos e precisamos ter cuidado: ciúmes extremo da parceira, possessividade, destruição de pertences dela, gaslight, marido inventando ofensas sobre a esposa para inferioriza-la, hipocrisia, falta de carinho com filhos, masculinidade tóxica, etc. Eu amei a abordagem da Anne porque ela deixa claro que são coisas ruins e que não tem desculpa, a esposa que sofre na mão do marido sabe que não é culpa dela e que ela é uma vítima, mas está presa porque ela vive numa época em que a mulher é praticamente uma propriedade do marido, assim como seus filhos. Imaginem relatar isso sobre um casal da alta sociedade inglesa no século XIX? Aí entendemos mais ainda a censura. Além disso, Anne aborda outras problemáticas, como o alcoolismo, a hipocrisia de membros da Igreja, dentre outros.
Sabemos que em casamentos abusivos muitas mulheres passam a se sentir culpadas pelas atitudes do marido porque caem em manipulações dele (e a culpa não é delas, isso infelizmente acontece), mas aqui a Anne retratou uma mulher forte, sensata e que pensa sempre de forma racional. Tudo a ponto de reconhecer o verdadeiro culpado e as razões deturpadas que o levaram a fazer isso. Eu achei muito bonito e corajoso ver uma história assim, porque imagino que tenha dado muita força para mulheres leitoras que viviam em situações parecidas, e muitas vivem até hoje.
O romance entre a Helen e o Gilbert também é construído de forma muito bonita, eu gostei de ver como eles acima de tudo eram grandes amigos. O único ponto do livro pra mim é que ele é bem descritivo, quem não gosta disso talvez se incomode, ainda mais no começo que tem bastante disso, mas em seguida passa. A história é muito envolvente e fluida, o que ajuda. Além disso, temos vários mistérios, que me cativaram muito.
Ler um livro publicado em 1848 escrito e narrado por uma mulher expondo um casamento abusivo é algo admirável, Anne Brontë ganhou meu eterno respeito. Personagens realistas, incríveis e dinâmicas muito bem construídas. Já nos primeiros capítulos se tornou um dos meus livros favoritos da vida, sem dúvida.