Lisa 14/03/2024
Um história com muitas vidas
Sobre Dickens há sempre muito a ser dito, desde sua prosa única até o debate entre separar ou não o autor de sua arte. Pai de muitos filhos (tantos livros, quanto biológicos), tem em David Copperfield seu predileto, como nunca deixou de expressá-lo. Este que é um dos seus livros em que é tanto romance de formação quanto uma memorabilia de seu protagonista como do próprio autor.
Os paralelos autobiográficos são nítidos aqui, seja pelo trabalho infantil ao qual ambos David e o pequeno Charles foram forçados e do qual o autor nunca superou ou perdoou por tal. Já adulto, Dickens ainda se referia a esse episódio como "são igualmente indescritíveis as sensações que ainda guardo na memória: a mais completa desesperança em que vivia; a vergonha que o trabalho me causava; e a tristeza que esmagava meu jovem coração... mesmo hoje, famoso e amado e feliz, eu muitas vezes me esqueço, em meus sonhos, de que tenho mulher e filhos queridos; ou de que sou um homem; e caminho, desolado e sem destino, por aqueles tempos de minha vida." palavras que seu personagem irá repetir ao longo de sua narração.
Vislumbramos também facetas de sua vida com a família Micawber e seu eterno drama perdulário, vida em prisão e etc, como uma representação de sua própria família que passara pelo mesmo. O identificamos também nas ocupações de David em se tornar estudante do Commons e então sua dedicação em aprender a estenografia, virar jornalista e então escritor famoso de artigos, romances e peças tal como seu autor. As próprias personagens femininas aqui também se remetem a suas esposas. Dora é uma face de seu primeiro e frustrado amor, Mary Beadnell (a quem anos após ao reencontrar sentiu imensa ojeriza por seu agora corpo gordo) e sua ex-esposa, Catherine Hogarth, cuja história, precisamos esquecer em prol de seguir gostando de Dickens, este que ojerizado por sua companhia, por seu constante ganho de peso, dividiu o quarto e parte da casa com estantes para ficar impedido que sua esposa tivesse contato com ele, se divorciando da mesma após após conhecer a atriz Ellen Turner e iniciar um caso com ela; não sem antes tentar internar sua esposa como louca em um manicômio, difamando-a nos jornais como má esposa e má mãe. Embora tal comportamento não tenha recebido apoio da sociedade, também não o foi rechaçado, afinal era Charles Dickens, já o nome mais influente da literatura, com todo seu rigor, humor e encanto.
Nesse sentido é preciso falar das mulheres em David Copperfield, essas que são as raízes centrais da história ao mesmo tempo as que recebem os piores destinos. A Sra. Copperfield sendo a primeira de todas a sofrer, tendo um fim de vida cruel nas mãos de um marido abusivo. Peggoty com seu poço de devoção fiel e força, pilar essencial durante toda a narrativa. Sra. Micawber com seus ataques histéricos de uma mãe de muitos filhos sem condições de criar e a ilusão de grandeza que nunca chega; a Sra. Trotwood, maltratada pelo ex-marido e amargurada por esse, e seu caráter rígido e decente. E então temos Dora, que paga um preço alto por sua frivolidade, por falhar em ser mulher, em ser dona de casa, que paga por ser um rosto apenas bonito. Seguida por Emily e sua imensa beleza que coloca em risco não somente a sua vida, mas a vida de todo o seu núcleo. Gostaria ainda de falar sobre Martha, outra boa mulher sofrida pelas mãos de homens inconsequentes. E por fim, Agnes, aquela escolhida como o anjo de toda história. mas que mesmo jogando luz sobre todos, não escapa de uma vida de martírio e penalidade.
A frase inicial desse livro, que é o primeiro do autor a ser narrado em primeira pessoa é a de "Se terei me revelado ou não o herói de minha própria vida, ou se tal posição, será ocupada por outra pessoa, caberá a estas páginas demonstrar". Não acho que David seja um herói, é digno e notável que cresceu e ultrapassou suas adversidades e as sustentou como muita dignidade desde a mais tenra infância, a contraposto, não foi ativo sobre nada que poderia sê-lo, não lutou por Emily, por sua tia, por Agnes, nunca se propôs a ajudar Traddles ou os Micawber, mas sendo apoiado constantemente por todos esses. Não se impôs sobre Urias quando poderia, sempre se reservando a dar poucas palavras de apoio e muitas de esquivas, nada além disso. Nunca sendo força motriz, mas coadjuvante.
Por fim, é preciso falar sobre dois dos aspectos que mais me agradaram nesse romance. O primeiro deles sendo a capacidade acurada e intrépida de Dickens de ler o seu tempo e suas nuances politico-econômicas, não deixando passar ileso os joguetes e as hipocrisias sociais, as meritocracias e os melindres envolvidos nesses processos. Nisso David é também um herói diferente, ele não exige recuperar um fortuna, mas construi-la do zero, representando a pluralidade da "midlle class" em que nada é dado, mas galgado, nada é garantido, mas constantemente moldado. Em segundo, justamente a pluralidade de vidas; David Copperfield transborda de personagens vibrantes, cada qual rico a sua maneira, com histórias, motivações e personalidades únicas. Não existe nada dual aqui, nada tomado e garantido como certo e bom (salvo Agnes), nada totalmente moral e imoral, mas facetas que se esquilibram entre esses polos, porque afinal é assim a vida.
Há ainda um elemento que retorno, pois me foi inescapável de acompanhar. Dickens e suas representações de individuos atípicos e PCDs. Temos Dowcher, uma mulher com nanismo, é desprezada, quase não reconhecida como mulher e como ser humano e a quem Dickens dedica inicialmente uma visão de ojeriza e separação e que retorna revelando nossa hipocrisia e julgamento. É Dowcher e Martha que com toda sua rejeição quem fazem as melhores boas ações. É também Dick, com seus "miolos" moles quem possui o melhor coração e leitura de ambiente.
Amei esta história, amei também a todos seus personagens, mesmo os que odiei. Esse é o predileto do autor e faz sentido que o seja, é o melhor do seu melhor. Há tanto sentimento tranbordando de suas páginas do começo ao fim. Queremos o melhor e este nunca chega. Preciso ressaltar minha indgnação com o final. sofri imensamente por Ham, que merecia melhor e não consigo aceitar o final de Murdstone, embora entenda que a mensagem seja a de que alguns males cessaram, outros serão contidos, uns remediados e outros permaneceram livres para danação e assim o aceito. E nem mesmo um grande autor está incólume de ser também fã e tiete de outros grandes artistas; David Copperfield é sem dúvidas o livro com a maior quantidade de referências a Shakespeare que ja tive acesso, são mais de 15 delas espalhadas ao longo de todo livro. Para enceraro, escolho as palavras da grandiosa Virginia Woolf: “Com tamanha força nas mãos, Dickens fez seus livros se inflamarem, não apertando a trama ou afiando a fala, mas atirando mais um punhado de gente no fogo”.