Che 20/06/2017
VOSSA MAJESTADE, A BUNDA FEMININA
Mais uma que leio por indicação de um amigo, tendo ocupado a última colocação do top 20 dele. A julgar pela leitura que fiz em poucas horas, sempre interrompida por gargalhadas, nem vendo o tempo passar de tão entretido, presumo que talvez ele devesse ter posto essa obra numa colocação melhor. É sem dúvidas muito superior a "Pagando por Sexo", de Chester Brown, que li faz pouco tempo, com prefácio do próprio Robert Crumb.
Diferente de Brown, Crumb faz um relato autobiográfico não só explícito no tocante às fantasias sexuais amalucados do autor (Brown era bem mais pudico nesse aspecto), mas ainda completamente franco, não poupando a si mesmo de várias críticas ácidas e duramente sinceras (há várias setas apontando para auto-retratos dele como' invejoso', 'tarado', 'neurótico' e etc). Ou seja, fica até difícil enxergar Crumb como tão egocêntrico quanto ele próprio pinta que é nos quadrinhos, já que ele mesmo faz tantos apontamentos negativos de si que, afinal, acaba tendo ali um curioso resultado de humildade (involuntária), mesmo nas histórias mais declaradamente egóicas, como aquela em que ele literalmente vira um rei num harém cercado de mulheres tesudas cujo maior sonho é... ter direito a uma fodinha com ele!
Mas a verdadeira majestade idolatrada pelo autor é o corpo feminino, praticamente endeusado em todas as 100 páginas de "Meus Problemas com as Mulheres" - na verdade é uma coletânea de histórias e esboços dele desde os anos sessenta até o começo dos noventa. Crumb - que pode ser chamado de tudo, menos de 'demissexual' - de bobo não tem nada: sabe que o espetáculo das curvas femininas é da cintura pra baixo, mas especificamente nas coxas e, claro, nas bundas. Por conta disso, o traço dele pra desenhar mulheres é completamente ímpar, com mulheres não só vistas como 'potrancas', mas como verdadeiras 'minotauras', dada a desproporção das nádegas e pernas em comparação com o resto. Essa licença poética acaba sendo não só original e logo compreensível, por conta dos fetiches do autor, mas também engraçada e lúdica, casando perfeitamente com o teor das narrativas que ele quer descrever.
Fazendo um paralelo com o cinema, Crumb seria uma espécie de Woody Allen dos quadrinhos: emerge nos anos sessenta, se consolida na década seguinte, fala muito de si mesmo em sua obra, teve formação religiosa (no caso de Crumb, católica) forte na infância e tem claros e conscientes sinais de neuroses relacionadas à repressão sexual nas primeiras décadas de vida. Nesse último aspecto, Crumb conta sem pudores, num tom de 'vingança dos nerds', sua volta por cima no tocante à oferta sexual que vem para ele depois que fica famoso.
Enfim, daria pra falar ainda muito dessa HQ que me divertiu bastante e conseguiu transitar entre a confissão honesta das próprias neuroses e a devoção (justa e merecida, convenhamos!) à 'Santa Bunda'. Me identifiquei com ele em muitos aspectos e arrisco até dizer que tenho vários fetiches em comum, embora não todos (nunca foi podólatra, por exemplo). Mas é melhor parar por aqui e apenas recomendar, com plena ênfase, a leitura da HQ. E fica o aviso: não vá achando que é algo da linha narrativa erótica à la Milo Manara, mas sim uma biografia cômica, mas muito sincera, de um nerd tarado que acorda e vai dormir pensando 'naquilo'. Pra quem souber encarar essa proposta - eu fui fisgado por ela logo de cara - será um prato cheio.
Ah, e não deixem também de procurar o documentário sobre Crumb de 1994.