Leila de Carvalho e Gonçalves 05/02/2022
Maktub
Batendo Pasto - Maktub
Sobre o Livro:
Qual a probabilidade de um livro, engavetado por quase quatro décadas, vencer o disputado Prêmio Jabuti? Como se justifica esse hiato, levando em conta que a autora, a despeito do longo silêncio, é um nome ainda lembrado no meio acadêmico?
Essa é a história de Batendo Pasto, da mineira Maria Lúcia Alvim. Uma poeta eclética e complexa cujo percurso comprova ?a marginalização da escrita das mulheres no cânone, o pavor do não-típico? e a ?tragédia cultural contínua de um país que não se cansa de desperdiçar poetas?, segundo observa Ricardo Domeneck.
Aliás, se não fosse o esforço conjunto de Domeneck e de dois outros poetas, Guilherme Gontijo Flores e Paulo Henriques Britto, Batendo Pasto não seria lançado em setembro de 2020. No auge da pandemia, parecia ?um pequeno milagre, num ano tão carente de milagres?, Alvim finalmente ter autorizado a publicação de um material que, não se sabe exatamente por qual motivo, ela decidira só tornar público após sua morte.
Entretanto, é difícil dissociar o motivo da falta de reconhecimento que sua obra jamais teve na medida que merecia ter. Para compreender melhor esse contexto, Batendo Pasto é o passaporte ideal, pois ele ?reúne e depura o que havia de melhor na poesia dos anos de 1980?, mas apresenta-se ?com a força de um livro escrito na semana passada?, conforme explica Gontijo Flores.
Resumidamente, trata-se de uma coletânea que descarta uma natureza idealizada, como pode sugerir o título, para evocar um mundo rural que a autora conheceu e conviveu, em especial, na fazenda da família. O resultado é um cotidiano que, impregnado de efeitos sensoriais e de uma luxuriosa densidade, expõe a essência dos versos de Alvim: ?seu aspecto críptico, misterioso, que se manifesta não só na profusão de vocábulos estrangeiros, mas na longa lista de palavras raras que estalam nos poemas e aguçam as capacidades associativas do leitor?. (Júlia Souza em matéria para a revista 451)
Um bom exemplo é o emprego do verbo ?pojar?, desembarcar ou intumescer, no encerramento do seguinte poema: ?Figueira-brava / provei tua doçura / morácea / tuas flores invisíveis encerradas em receptáculo carnoso / alvacentas / diáfanas / tua pele castanho-violácea / vermelho-carmesim / a tua polpa / Figueira-mansa / escamosa / solitária / tenho as costas perfuradas por dois olhos / minhas artérias pubescentes / pulsaram no batismo do teu nome / árvore-corpo / ?pojando?.?
A bem da verdade, o termo ?bater pasto é estar e atuar na terra fértil; e, no limite, fundá-la?. Consequentemente, ele pode ser entendido como uma metáfora de duplo significado. Enquanto um consagra o ofício do poeta, que a autora prova ter fôlego para ?roçar, semear e colher?; o outro envolve o trabalho do leitor para superar um vocabulário inusual, que traz à luz palavras em desuso, como ?ajoujar ?, ?camarilha?, ?espaventar? ou ?frege?, ressurgidas com a força de um vulcão inativo que acaba de despertar.
?Este soneto é em usufruto / das palavras que aqui vou perpetrar. / O fruto se retalha, dissoluto. / Palavras criam corpo no lugar. / / Corre os olhos num rasgo de Absoluto. / Repare nesta folha, circular. / Nesse gomo roliço, diminuto. / Na pedra corriqueira, a ressudar. / / Assim o Coração, pão de minuto / Aquilo que na moita irá grassar. / / Amor pardinho, virá o dia curto. / / O Bem virá depois, para ficar. / Ao contrair o Sol, zarpo de bruto: / Meeira, me absoleto, sabiar.?
Quanto a história de Maria Alvim, em fevereiro do ano passado, aos 88 anos, ela faleceu em decorrência de complicações da Covid-19. Na ocasião, o livro chegara às livrarias há poucos meses, mas já atraía o interesse de quem aprecia poesia e também colhia elogios da crítica. Estimo que o quanto ela conseguiu acompanhar, tenha lhe dado alegrias. Maktub.
Aquele que um dia fará meu caixão / de antemão tem as medidas: / menina-carapina / surrupiando / Viu crescer, prometer, viu sazonar. / Quando o roxo dos ipês configurou-se no horizonte / aquele que fará o meu caixão / numa cestinha depôs amor / e morte / Lasca por lasca / fava por fava / fui pedindo, fui rasgando, fui dosando / lóbulo mindinho / estes rajados de pele, estes crestados / o estalido da cabiúna/ o galo alvorescente / dourou.
Sobre a Edição:
A Editora Relicário superou minhas expectativas. O livro possui capa brochura com abas, foi impresso em papel off-white, de boa gramatura, e exibe confortável diagramação. A edição possui uma Fortuna Crítica impecável, que não deve ser deixada para trás:
- O Prefácio reúne dois textos: Os Percursos De Um Livro Inédito De Maria Lúcia Alvim, de Ricardo Domeneck, e Maria Lúcia Alvim No Rol Do Esquecimento: A Vida E A Vida Da Poesia, de Guilherme Gontigo Flores.
- Já o Texto de Orelha e o Posfácio, Um Poema De Maria Lúcia Alvim, são de autoria De Paulo Henriques Britto.
Boa leitura, ou melhor, ?vá bater pasto?!