Dhiego Morais
14/02/2021Com SangueCelulares enterrados a muitos palmos na terra e tocando. O mundo se esfacelando. Criaturas ressurgindo. Tempestades aterradoras isolando pessoas. O passado parece faminto por acertar as contas, afinal, toda notícia com sangue vende. E essas devem vender muito bem.
Após o seu lançamento em abril deste ano no exterior, Com Sangue (“If it bleeds”, no original) finalmente chega ao Brasil pelas mãos da editora Suma com todo o tratamento já conhecido pelos leitores. Em sua mais recente antologia de contos, no mesmo estilo de Quatro Estações e Escuridão Total Sem Estrelas, Stephen King leva os seus leitores a outras quatro jornadas especiais, com todo o brilhantismo de sua escrita, carregada de personagens complexos, críveis e absolutamente impressionantes.
Para os leitores que adoram se aventurar pelas histórias curtas escritas pelo mestre do terror e do horror, Com Sangue surge como mais uma das suas mais acertadas antologias, brindando os fãs com tramas equilibradas, cativantes e, claro, capazes de promover arrepios na espinha. Diferente de O Bazar dos Sonhos Ruins ou Tudo é Eventual, por exemplo, nas quais encontramos uma profusão de histórias que variam entre boas e ruins, o seu novo livro de contos comprova a natureza brilhante de antologias de quatro contos, mais bem selecionadas e mais abertas ao desenvolvimento das narrativas e, principalmente, de suas personagens, do jeito que o autor gosta de fazer em seus romances.
Dito isto, vamos aos contos e suas qualidades:
— O Telefone do Sr. Harrigan:
Aterrissando no início dos anos 2000, conhecemos Craig, um garoto que nas horas vagas, depois da escola, auxilia o senhor Harrigan, um ricaço aposentado em suas tarefas mais simples, como cuidar das plantas e, principalmente, a ler para ele. Diariamente, por poucas horas, Craig se esquece do mundo entre as paredes da propriedade solitária daquele senhor comedido, de língua afiada e olfato calibrado para os negócios e investimentos.
Harrigan parece ter parado no tempo, sem qualquer interesse nas novas tecnologias e outras distrações. Adepto do jornal impresso e do telefone de gancho, o velho segue bem aposentado, mas sempre de olho nos principais índices da Bolsa. Poucas vezes por ano, se permite enviar algumas raspadinhas por correio para algumas pessoas – e isso inclui o pequeno Craig. Numa dessas, o garoto ganha uma boa grana e desejoso de agradecer, decide presentear o Sr. Harrigan com um iPhone.
“A juventude é uma coisa maravilhosa — disse o Sr. Harrigan. — Pena que é desperdiçada com as crianças.”
Quase inflexível, Harrigan decide ficar com o aparelho celular, após Craig o ensinar a acessar os dados em tempo real da Bolsa de Valores. Entretanto, a morte o atinge subitamente e tudo o que resta é o celular e uma última gravação simples para a sua caixa postal. A partir daqui algumas coisas estranhas passam a acontecer e a figura do velho e do garoto é unida por situações tenebrosas.
O Telefone do Sr. Harrigan inicia a antologia de maneira magistral, entregando um conto sobre as aflições relacionadas às mudanças, à tecnologia, além de conversar de maneira próxima sobre a morte e seus reflexos na vida das crianças. A natureza da história remete à infância do próprio King e também à experiência, desta vez, já adulto, de quando perdeu um amigo próximo.
— A Vida de Chuck
Em uma história a princípio confusa e que parecia não ser tão boa quanto a anterior, King convida os seus leitores a conhecer uma história a partir de seu final. Dividida em três atos (Obrigado Chuck!, Artistas de rua e Eu contenho multidões), seguimos por uma trama complexa e poética, de uma história dentro da outra e dentro da outra. Enquanto o mundo parece acabar, observamos de longe o relacionamento de duas pessoas, suas decisões, seu carinho e sua curiosidade frente aos inúmeros agradecimentos a um cara chamado Chuck, agora aposentado e em seus últimos momentos de vida. Em outro ato, o vemos dançar despreocupadamente nas ruas de uma grande cidade, junto de uma desconhecida. E no ato um, o conhecemos ainda mais jovem, nos tempos do colégio, um dançarino em ascensão, um garoto com inúmeros sonhos e paixões, uma cicatriz e, o mais importante: uma pessoa, como qualquer outra com um mundo inteiro dentro de si.
“Eu não acho que uma biblioteca pega fogo quando um homem ou uma mulher morre, acho que um mundo inteiro cai em ruína, o mundo que a pessoa conheceu e em que acreditava. Pense nisso, moleque: tem bilhões de pessoas no mundo e cada uma delas tem um mundo inteiro dentro de si. A Terra que suas mentes conceberam.”
A beleza de A Vida de Chuck é fantástica. Ao optar por narrar começando pelo fim, King usa da metalinguística para contar uma historia que desabrocha em outras mais. A trama conversa intimamente com o leitor e cativa desde o primeiro dos três atos. Quando o leitor descobre a natureza de cada um e como eles funcionam entre si, ao chegar ao último deles, certamente haverá ternura em seu coração. Reconhecer que possuímos um mundo inteiro dentro de nós mesmos e observá-los nascer, crescer e se encerrar é uma experiência única daquilo que nos faz leitores. É florescer e colher a si próprio nos atos de nossa vida. Assim, compreendemos como a ficção se transforma em um espelho da nossa alma.
— Com Sangue
Retornando com uma de suas personagens mais icônicas, King finalmente a deixa brilhar com todo o protagonismo que sempre lhe foi devido: Holly Gibney. Antes de comentarmos mais um pouco, é importantíssimo salientar que esta novela tem grandes spoilers da trilogia Mr. Mercedes e de Outsider. Então, se você ainda não leu essas obras, fique longe de Com Sangue.
Trabalhando nos Achados e Perdidos, Holly continua resolvendo problemas, desaparecimentos e outros mistérios, além de algumas cobranças quando requisitada. Junto de Jerome — e sua irmã, Barbara — e de Pete, ela tenta seguir com a vida, sem que seja consumida pelas memórias dos eventos terríveis compartilhados com Ralph Anderson. Pelo menos até que a explosão em uma escola, nas reportagens na TV chame a sua atenção.
“Foi o gostar que se perdeu, e amar sem gostar é como uma corrente com uma algema em cada ponta.”
Com Sangue surge como a primeira história protagonizada por Holly, além de resgatar e tentar responder algumas questões surgidas em Outsider. Nesta novela, King aproveita para desenvolver mais sobre os dramas familiares e as amizades de Holly. Uma história deliciosa de se ler!
— Rato
Talvez um dos temas mais recorrentes de Stephen King, conhecemos aqui mais um escritor e suas frustrações: Drew Larson é um professor com dificuldades para finalizar suas histórias. Tendo escrito apenas contos, ele sonha em finalizar o seu primeiro romance, mas as ideias para suas histórias parecem vir em ocasiões cada vez mais raras. As consequências de não conseguir termina-las refletem em seu casamento e já o puseram em grandes enrascadas.
“A mente podia construir uma cidade, remodelá-la e derrubá-la, isso tudo enquanto você estava tomando banho ou se barbeando ou mijando”.
Quando uma história para faroeste acende algo em sua cabeça, Drew decide se enclausurar sozinho em uma cabana isolada a quilômetros de distância de sua casa. Aparentemente nada além de mais um escritor se isolando, mas as coisas começam a dar errado quando uma tempestade violenta promete derrubar as temperaturas e fechar estradas durante dias. Drew acha que ficará bem. Mas será que ficará mesmo?
Com Sangue é a prova de que King continua escrevendo histórias curtas com tanta habilidade quanto em seus romances. Uma antologia acertada e que merece todos os elogios.