Kramp

Kramp María José Ferrada
María José Ferrada




Resenhas - Kramp


54 encontrados | exibindo 31 a 46
1 | 2 | 3 | 4


Mari 09/06/2022

Livro surpreendente e leve
Em "Kramp", uma menina chilena de 7, 8 anos, chamada M., conta com seu olhar infantil seu cotidiano fora do comum para uma criança da sua idade. Seu pai é caixeiro-viajante e vende os produtos da marca Kramp e leva a filha para os pequenos povoados, para ela acompanhá-lo nas vendas (fazendo com que os novos clientes simpatizassem mais com ele). Sua mãe é uma bela mulher, mas infeliz e deprimida e, apesar de deixar a menina acompanhar o pai desde que fosse depois das aulas e durante as férias, ela acaba não prestando muita atenção para o fato de que a menina não ia à escola nunca, para acompanhar o pai. Depois, fica meio explicado porque a mãe era tão deprimida. Assim, a menina acaba crescendo no meio de homens adultos e viajando de um povoado para o outro.

O ponto forte da novela é mesmo a narrativa do ponto de vista infantil da menina e, depois, quando ela, já adolescente, tenta revisitar sua infância, mas acaba percebendo coisas que o olhar da infância não lhe permitia perceber antes.
comentários(0)comente



Lurdes 17/05/2022

Kramp, de Maria José Ferrada, @editoramoinhos pode ter menos de 100 páginas, mas não é um livrinho, é um Livraço.

Eu vi a capa e fiquei curiosa em conhecer a estória por trás dela, pois uma criança fumando, feliz, indica que algo está bem fora do contexto, né?

O cenário é o interior do Chile, início dos anos 1980.
M é a protagonista, narradora e a menina da capa.
Filha de D e de uma mulher muito bonita.
(Todos os personagens são nomeados apenas por uma letra. A exceção é a mãe, ora referida como "minha mãe ", ora como "uma mulher muito bonita".)

D é um caixeiro viajante, representante dos produtos de ferragem Kramp, que percorre pequenos vilarejos em seu Renault, assim como inúmeros outros caixeiros viajantes, cada qual com seu catálogo, todos empenhados em vender, mesmo que tenham de usar de artifícios e malandragem.
Nenhum glamour. Estradas empoeiradas, bares e hoteizinhos simples, muitas estórias contadas e inventadas, tudo um pouquinho decadente.
É neste universo que M vai circular, entre seus 7 e 9 anos.

A mãe de M está passando por uma crise depressiva, que a mantém à parte do que ocorre ao redor, e neste contexto M vai acompanhando o pai em seu ritual se vendas estrada afora, primeiro matando algumas aulas esporádicas e, aos poucos, se envolvendo mais e mais no processo (até porque a sua presença infantil contribui para o aumento das vendas).

Ao invés de estudar e brincar com outras crianças, M vai absorvendo o modo de vida destes caixeiros viajantes e seus hábitos, inclusive o de fumar.

D tem ideias muito particulares sobre tudo e M também passa a criar inúmeras teorias sobre o funcionamento do mundo, que incluem muitos pregos, porcas, parafusos, martelos e tantos outros produtos Kramp.

O Chile estava vivendo uma ditadura militar sangrenta, que deixou milhares de mortos e desaparecidos, o que vai influenciar o destino de alguns personagens, inclusive o de M.

Eu li despretensiosamente e me deparei com um livro incrível, de uma sensibilidade impar para criar esta narrativa, segura e inovadora, sob o ponto de vista infantil. Não é à toa que a autora tem experiência com livros infantis e domina este universo.
comentários(0)comente



Debora.Oliveira 05/05/2022

Não julgue o livro pela capa!
Livro lido graças a recomendação do Leia Mulheres Niterói, até então uma autora que não conhecia e uma capa que me intrigou.

A narrativa surpreendeu demais ao trazer uma criança passando por uma trajetória tão fora dos padrões com seu pai que é caixeiro viajante e uma mãe depressiva. Que livro potente e narrativa forte!

Quote: "O que eu quero dizer é que cada pessoa tenta explicar o mecanismo das coisas com o que tem em mãos."
comentários(0)comente



Carla Verçoza 07/03/2022

Ótimo!
Um livro com uma narrativa interessante, um tanto diferente.
Aqui acompanhamos alguns anos da vida da protagonista, seus 7/8 anos, em que passa em situações não convencionais para uma menina de sua idade.
Achei bonito com ela narra com aquela visão infantil, mostrando como a criança absorve os fatos, como processa tudo q vai vivendo.
A relação com o pai inconsequente, a mãe depressiva, os amigos adultos q encontra nas viagens, a presença da ditadura.
Gostei da forma como, já aos 14 anos, a garota revisita suas histórias e sente aquele estranhamento ao tentar reviver, reconhecer algo da infância anos mais tarde.
comentários(0)comente



Giselaine 05/03/2022

"coisas que eram simplesmente como eram"
Kramp é um livro narrado por uma menina de 7/8 anos e com um passagem de tempo para 13/14. Um livro pequeno pra tantos temas importantes, a começar pela lógica das crianças, pela ingenuidade e sagacidade dos pensamento e conexão de idéias. Pela paternidade irresponsável e com pouco afeto (ou afeto de uma forma não convencional???). Pela depressão materna. Pelos anos de chumbo de Pinochet. E pela quebra do encantamento , da visão mais adulta das situações. Confesso que o final me deixou um pouco surpresa, mas sem perder o encantamento pela obra! Recomendo muitíssimo a leitura, literatura chilena da melhor qualidade!
comentários(0)comente



Leticia Nassinger 15/02/2022

Suspiro?num fôlego só?
Precisava ler algo leve depois de ?rinha de galo?, e tropecei nesse livro. Leitura gostosa, num ritmo leve de infância? e no fim, o aperto no peito?
comentários(0)comente



Gabriel.Juca 06/02/2022

E vamos de surpresa. Cheguei a Kramp com o coração aberto e essa obra o encheu. O livro chileno, ambientado no período da ditadura de Pinochet, conta a história da pequena M (de oito anos) e seu pai D, um caixeiro-viajante, representante da Kramp, uma empresa de marcenaria. Longe dos olhos da mãe (uma mulher melancólica e distante), M falta as aulas pra acompanhar o pai nas vendas por vilarejos e aprende nessas viagens coisas sobre a vida que não aprenderia na escola.
A narradora é muito carismática. Combina a inocência de uma criança com a sabedoria de uma viajante, que enxerga em tudo um aprendizado. O livro curto, que normalmente se ler em uma sentada, exige digestão. Uma leitura que eu pensei que eu devoraria em um dia acabou me engolindo.
comentários(0)comente



ana 02/01/2022

não é resenha vou só colocar as frases que gostei (mas tenho que dizer que amei o livro, foi uma leitura que por mais que curta falou muito

?todo lo que siguió fue posible gracias a que mi madre estaba ausente. no porque saliera mucho de casa, sino porque uma parte de ella había abandonado su cuerpo y se resistía a volver.?

?mi comprensión del mundo se expandía como una esponja, si a eso se sumaba todo lo que iba escuchando en los mesones de las ferreterías, en cafeterías, los hoteles.?

?nos habíamos vuelto argollas de humo. y nos desintegrábamos al cruzar el cielo de la ciudad.?
comentários(0)comente



Vi 27/12/2021

Kramp é um um romance curtinho e autobiográfico da escritora e jornalista chilena Maria José Ferrada. A protagonista "M" é uma criança de sete anos que narra suas viagens atravessando cidadezinhas com seu pai "D", que era vendedor de ferramentas da marca Kramp.

"M" conta como funcionava os pensamentos do seu pai e a forma meio imprudente como foi criada, tudo com um olhar leve e livre de ressentimentos. É um livro muito fácil e divertido de ler, em que você se envolve naquela vida peculiar que os caixeiros-viajantes adotavam nos anos 80. Mas também é pautado em um pano de fundo triste, em que a ditadura de Pinochet, no Chile, fazia desaparecidos políticos.

Gostei muito dele, li em dois dias. A autora tem uma maneira peculiar de narrar que deixa a leitura bem fluida.
comentários(0)comente



spoiler visualizar
comentários(0)comente



Biblioteca Álvaro Guerra 28/10/2021

Kramp
De tanto escutar falar sobre os produtos Kramp, comecei a utilizá-los para entender o funcionamento do mundo, e assim, enquanto meus companheiros faziam poemas às árvores e ao sol de verão, eu homenageava olhos mágicos, alicates e serrotes. Também inventava mecanismos como "A máquina de somar", que funcionava com base num retângulo de madeira compensada, pregos e porcas (era como um ábaco normal, mas eu o chamava assim: "A Máquina de somar"). Recordo-me de que fui acampar, saímos para olhar as estrelas e, utilizando o Cruzeiro do Sul como referência, expliquei aos meus companheiros que o que brilhava lá longe não eram estrelas, e sim tachinhas de três polegadas com as quais O Grande Carpinteiro havia pendurado tudo no céu. Inclusive a nós. O que quero dizer é que cada pessoa tenta explicar o mecanismo das coisas com o que tem em mãos. Eu, aos sete anos, tinha estendido a minha e topado com o catálogo da Kramp.


Livro disponível para empréstimo nas Bibliotecas Municipais de São Paulo. Basta reservar! De graça!


site: http://bibliotecacircula.prefeitura.sp.gov.br/pesquisa/isbn/9786556810041
comentários(0)comente



Itamara 19/09/2021

Contra a natureza das coisas não há nada que se possa fazer
Comecei essa leitura de forma bem aleatória e qual foi a surpresa já nas primeiras linhas. É um livro curtinho, mas que carrega diversas simbologias e possui uma linguagem bem agradável.

Neste romance premiado da chilena Maria José Ferrada (ainda acho que seria mais adequado novela), uma das coisas que mais me agradou foi a narrativa a partir do ponto de vista de uma criança, M. Eu particularmente adoro histórias contadas sob o ponto de vista de crianças, claro, desde que bem feitas, e aqui o livro conseguiu me fisgar tão bem que eu simplesmente amei a leitura. A ingenuidade de M e seus questionamentos tão pertinentes, ainda que para uma menina de 7 anos, contrastam com o cenário e trazem muitas metáforas super bem pensadas quando consideramos o contexto da obra- regime militar no Chile.

Temos uma espécie de romance de formação, pois acompanhamos o crescimento de uma personagem que parece já ter nascido grande nas ideias e na forma de avaliar o mundo. Ao acompanhar o pai, caixeiro-viajante, nas viagens aos pequenos povoados para vender os produtos Kramp, M também nos faz refletir sobre questões que parecem se perder quando nos tornamos adultos: as relações entre as pessoas, as rupturas, a precariedade vivida e nem sempre notada dos mais vulneráveis, as mazelas oriundas de um governo ditatorial.

*Destaque para essa edição de capa lindíssima e que absolutamente tem tudo a ver com o livro. Leiam!
comentários(0)comente



Picón 04/08/2021

Bom e curto.
Nos dois terços iniciais da obra temos o ponto de vista de uma criança e sua relação com o mundo ao seu redor. Podendo ser considerada um gênero, a narrativa do ponto de vista pueril geralmente é bem carismática por conta de sua ingenuidade e muitas vezes comicidade. E aqui não é diferente. As analogias criativas e inesperadas que a autora cria a partir da protagonista infantil empolgam a leitura.
No terço final temos a personagem principal já entrada na adolescência, experimentando a ação da distância (temporal e espacial) nas relações e nas memórias.
Obra bem acabadinha, com pontos de autorreferência bem amarrados e algumas gotas de poesia.
comentários(0)comente



Angela 29/06/2021

O livro é narrado sob a ótica infantil de M, uma menina de sete anos, filha de um caixeiro-viajante, contando a história de como ela começou a trabalhar com o seu pai para vender produtos da marca Kramp.

M decide ser ajudante de caixeiro-viajante quando ouviu a história da alunissagem pela primeira vez. Uma garota determinada, M sempre estava dizendo que tudo era possível (fazendo uma referência a Neil Armstrong quando pisou na lua). Ela então convence o seu pai, ele aceita, e dentro de um carro velho, os dois começam a sair em lojas nas cidades vizinhas vendendo os produtos.

A partir daí, o leitor entra num contato íntimo com a vida dos caixeiros-viajantes, trabalhadores que precisavam a todo custo vender os produtos para ganhar dinheiro. É revoltante acompanhar M (uma menina criança) fazendo parte de um mundo masculino. (Essa foto emblemática da capa diz demais sobre a protagonista e a época em que se passa a história, mas por um instante eu cheguei a pensar que fumar é o menor dos problemas na vida dela).
.
A narrativa traz elementos autobiográficos da vida do pai da autora, que viveu nesse ofício de caixeiro-viajante nos anos de 1980 e 1990, no Chile. Aparentemente é uma narrativa simples, comum, mas em menos de 100 páginas, a autora aborda a Ditadura Militar (de Augusto Pinochet), tratando dos desaparecimentos políticos no país, violência de Estado, relação entre pais e filhos, rupturas na família; depressão de uma mãe, uma infância negligenciada, roubada; a precariedade da vida e na convivência entre o governo e a população e fragilidades humanas.

O que mais me impressionou é como a memória da personagem é trabalhada, principalmente nos capítulos finais. Ela transforma uma história simples numa complexidade sobre o tempo, afetividade, distanciamento, complexidade sobre a vida. Kramp tem um enredo forte narrado com leveza, delicadeza.
.
(Normalmente eu não costumo gostar de livros narrados por crianças, porém Kramp me transformou. Não faz muito tempo que concluí a leitura, ainda estou formulando algumas questões que estão surgindo, mas é um livro inesquecível – já quero fazer releitura. Tornou-se um dos meus livros favoritos).
comentários(0)comente



Rafael Mussolini 24/06/2021

"KRAMP" de María José Ferrada (Editora Moinhos, 2020) é um livro aclamado. Foi vencedor do Prêmio de Melhor Romance do Círculo de Críticos de Arte, do Prêmio de Melhores Obras do Ministério da Cultura e do Prêmio Municipal de Literatura em Santiago. Todos esses feitos foram alcançados nesse que foi a estreia de María Ferrada no gênero romance. Ferrada até então havia se dedicado mais aos livros infantis. Com uma escrita acessível, questionadora, irônica e poética a escritora nos insere na dinâmica de uma relação familiar nada convencional.

"Unidos por um catálogo de produtos de serralheria da marca Kramp e viagens num Renault velho por estradas, povoados e cidades, uma filha cresce ao lado de seu pai, caixeiro-viajante, a aprender ensinamentos sobre o mundo e a vida. Da infância à adolescência, M narra seus aprendizados e o correr dos anos, até o evento que marca uma ruptura na família, acionando o dispositivo dos sintomas parentais e outras rupturas e mais questionamentos sobre o universo e as peças que não se encaixam, as dores desparafusadas que se acumulam, e o revelar das engrenagens discretas do afeto rangendo no crescer da sua maturidade."

Em Kramp, acessamos as memórias e a visão de mundo de uma menina de apenas 7 anos que só é nominada como M e diferente da grande maioria das histórias, a devoção e o afeto de uma filha perante o pai, aqui chamado D, assume outras formas e manifestações que desafiam o senso comum. É nítida a existência de um afastamento, de uma barreira entre os dois, que parece ter vínculo com o passado desse pai, e a forma que pai e filha encontram de se aproximarem e demonstrar afeto é fazendo com que um se insira no mundo do outro. O pai vive para o trabalho e a menina sabe que para fazer parte de seu mundo teria que fazer parte de sua rotina. Ela começa a trabalhar com ele sem conhecimento da mãe e isso, é claro, promove um afastamento da escola e um pacto entre os dois.

"E minha mãe, minha mãe era uma pessoa taciturna. Porém, agora que penso bem nisso, não era taciturna. Simplesmente estava triste e a tristeza não lhe permitia prestar atenção nos detalhes."

A menina M narra então a história desse ponto de vista. De uma menina que tem um pai cacheiro viajante, gozando de uma espécie de liberdade que permite com que ela veja e analise o mundo de outras maneiras, mesmo em plena efervescência da ditadura chilena. Em "Kramp" vemos uma espécie de rompimento com o método da escola que é muito simbólico, uma vez que viajando de vilarejo em vilarejo, tendo contato com diversos tipos de pessoas, situações e mais as demandas de "trabalho", nossa narradora acaba embarcando em um processo de conhecimento que também é muito válido - o conhecimento de mundo pela experimentação da vida. Percebi no livro um embate entre a teoria e a prática, entre a observação e a experimentação.

A capa da edição brasileira foi muito perspicaz e corajosa ao jogar no mercado uma imagem que trás uma criança fumando. A imagem de uma criança fumando gera confusão e desconforto, mas também chama atenção para a temática do livro. Na história nossa narradora começa a fumar muito cedo, entre os sete e os oito anos, e essa era uma realidade ali pelos anos 80 onde se você não era fumante, era fumante passivo e não existiam campanhas anti fumo. O fato da garota fumar também serve para ambientar a história ali no Chile de Pinochet e no modelo de vida dos caixeiros viajante, onde o politicamente correto praticamente não existia. Para conseguir uma venda esses vendedores ambulantes faziam quase de tudo, inclusive criar narrativas tristes e não verdadeiras para tirar lucro de uma possível empatia. Fumar era uma das formas de M se igualar ao pai e aos homens, também caixeiros, que cruzavam seu caminho. O fumo da garota também representa um excesso de liberdade, que na infância tem seus pontos negativos. É uma liberdade que caminha lado a lado com a negligência.

Mas o ponto focal do livro, é percebermos enquanto leitores, como a visão de mundo da menina vai se constituindo através da sua realidade. O pai e a filha vendiam pregos, martelos, serrotes, maçanetas, olhos mágicos da marca Kramp e tanto o catálogo de vendas, quanto as demandas de trabalho e as estratégias para se vender cada vez mais, vão servindo de instrumento para a garota entender o funcionamento das coisas. A maleta do pai deixa de ser apenas uma ferramenta e a menina passa a ver o mundo como uma grande engrenagem gerida pelo Grande Carpinteiro.

"O funcionamento dos ecossistemas, a lei de causa e efeito, a relatividade, "tudo pode ser entendido quando se olha para as gavetas de uma loja de ferragens", dissera D. "E também para serras e os martelos que ficam pendurados na parede", acrescenta."

A menina e seu pai, apesar de enfrentarem as mazelas e as debilidades do mundo e principalmente da vida de trabalhadores, parecem viver em um mundo paralelo, um mundo muito circunscrito a suas próprias regras. "As vendas, como todo trabalho, eram um sistema de sobrevivência. E, como a maioria desses sistemas, não era suficiente para que um ser humano sobrevivesse até o final do mês, e sim até mais ou menos o dia 15."

A menina que só tem contato com o pai e com os demais caixeiros viajantes e suas histórias mirabolantes, passa então a entre um cigarro e outro, uma vila e outra, a buscar sentido à existência. M que é fascinada pela incursão do homem a Lua, passa a utilizar das suas regras de mundo como uma grande engrenagem de porcas e parafusos para pensar o universo. Esse fascínio também foi herdado do pai que acompanhou a transmissão do processo de alunissagem pela TV.

Se tudo era possível era porque existia uma grande engrenagem que permitia isso. A partir desse ponto a grande sacada da narrativa é o fato de que nossa narradora vai começando a perceber que as engrenagens da vida também podem nos surpreender, que o mecanismo das coisas do mundo pode ser impreciso, que também precisam de manutenção para seu pleno funcionamento e que sempre vamos nos deparar com um parafuso mal colocado, com uma porca que perdeu a pressão e que "um único parafuso pode precipitar o fim do mundo." As referências aos objetos com que trabalha aparece o tempo todo, e por vezes, de forma muito poética, quando M compara as estrelas a uma infinidade de tachinhas, quando ela diz que a sua relação com o próprio pai é de 6 milímetros.

Kramp faz um registro importante sobre a função da memória. Além de conhecermos fragmentos sobre o passado da própria família de M, nos deparamos também com fragmentos de acontecimentos e tragédias vinculadas à ditadura do Chile. Como o livro é narrado por uma criança as questões relacionadas à ditadura aparecem de forma mais sutil, mas que demarcam muito bem sobre a importância da memória, da própria fotografia e da resistência para manutenção da memória e para a possibilidade de se fazer justiça aos desaparecidos. Esse contexto pelos olhos de uma criança cria um universo interessante para a história.

"O que quero dizer é que cada pessoa tenta explicar o mecanismo das coisas com o que tem em mãos. Eu, aos sete anos, tinha estendido a minha e topado com o catálogo da Kramp."

A narrativa em primeira pessoa da María José Ferrada é impecável. Partindo de uma vivência nada convencional de uma criança que nos mostra grandes conhecimentos sobre a vida e o universo, em paralelo ela nos mostra que a tônica da solidão, do afeto, do abandono e das referências não deixam de ser fundamentais para a formação de uma criança. O livro rompe com a idealização da infância, pois o ato de crescer e se ver parte de um todo é algo confuso e por vezes doloroso. É entendendo a dinâmica do sofrimento que criaremos crianças mais fortes para lidar com as pesadas engrenagens que sustentam o mundo.



site: https://rafamussolini.blogspot.com/2021/06/kramp-de-maria-jose-ferrada.html
comentários(0)comente



54 encontrados | exibindo 31 a 46
1 | 2 | 3 | 4


Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com a Política de Privacidade. ACEITAR