Lili 20/08/2022
Buraco
Com frases curtas, poucas, todavia, certeiras palavras e feita 95% com produtos Kramp, estreia da chilena na ficção para adultos deve cair na probabilidade, resistir a terremotos e tornados para permanecer através do tempo ao escolher M, uma garotinha de sete anos, para ser protagonista de um drama familiar dentro de um cenário assombrado pelos fantasmas deixados por Pinochet e seus demônios.
Filha de um caixeiro-viajante e de uma mãe ferida de múltiplas formas pelo regime de terror do seu país, M fica encantada com a história do pai, e deixa a escola, secretamente, e a mãe, algumas vezes por semana, para acompanhá-lo como ajudante no ofício percorrendo cidades e vilarejos vendendo produtos de serralheria da marca Kramp.
“Aos sete anos [...], escutei pela primeira vez a história da alunissagem e sua moral: com os sapatos bem lustrados e o traje adequado, tudo é possível. E, acho que para me prevenir sobre a natureza da vida, D acrescentou que também era necessário ter um pouco de sorte.
Nessa mesma tarde limpei meus sapatos de verniz com uma escovinha, coloquei um vestido verde combinando com meias verdes e decidi que seria a ajudante de D.” (p.14)
O ingresso precoce de M no mundo dos adultos, sua chamada educação paralela, nos dá acesso com uma visão singela e uma linguagem bonita, metáforas divertidas em boa parte, às dificuldades do ofício do pai, às artimanhas para conseguir o suficiente para terminar o mês e ao buraco deixado por quem regou com sangue e poluiu com o medo o solo e o ar do Chile.
Essa linguagem mostra sua conexão com o pai, são dos momentos com ele que surge sua forma tão singular de expressar, entretanto o próprio uso da inicial D para falar do pai, e o fato da mãe ser chamada apenas de mãe, pareceu indicar que ela enxerga essas relações de forma bem distinta, ambas tem distanciamento, contudo ela descobre, e verbaliza isso, que a distância da mãe tem um bom motivo (“uma mãe inteira teria notado”), enquanto a do pai é por “ele não ser grande coisa como pai, mas um excelente patrão.”.
“O que quero dizer é que cada pessoa tenta explicar o mecanismo das coisas com o que tem em mãos. Eu, aos sete anos, tinha entendido a minha e topado com o catálogo da Kramp.” (p. 18)
O ponto mais importante talvez seja o espaço-tempo. Nós não podemos esquecê-lo, o uso de palavras e construções fáceis de entender, os capítulos super curtos assim como o tamanho da obra talvez leve muitas pessoas a embarcarem em um avião a jato, a concluir em uma sentada, há uma composição que permite isso, essa velocidade, mas não o faça, aceite seu barco a vela simples para viajar nessas páginas. Lembre-se que é narrada por uma menininha, lembre-se que as pessoas evitam normalmente contar coisas da mesma forma que contariam a outras pessoas e perceba todos os sinalizadores mais sutis, mais mascarados para compreender, antes do momento em que será impossível mesmo para uma leitura descuidada descobrir que tipo de livro é Kramp: duro, dolorido, profundo.
Tenho minha epifania, perto do fim. Percebo diante dos olhos minhas partes fragmentadas unidas com tachinhas, pregos, parafusos e porcas da marca Kramp tentando formar uma unidade e conseguindo resistir por quase toda obra por sua dicotomia: momentos de luminosidade, uma linguagem divertida, dividindo lugar com uma sombra densa, os buracos. Essa estrutura cheia de vazios que ficou não resistiu ao último tremor de terror, a última ventania. Encerrei Kramp com uma alma remendada 80% por peças do catálogo, caio na improbabilidade com M, tudo se solta, somos um amontoado de palitos.