Pandora 27/12/2019Martin Page havia escrito sete livros recusados por todas as editoras de Paris, quando, rindo de seu infortúnio, resolveu criar um personagem baseado nele mesmo e lançou “Como me tornei estúpido”, que foi um sucesso não só na França, mas em toda a Europa. No Brasil, a 1ª edição esgotou-se em pouco tempo.
Lendo A libélula dos seus oito anos dá para entender um pouco o porquê de Page não ter tido sucesso imediato em suas primeiras tentativas: sua escrita é única e inteligente, mas também muito esquisita.
Esta é a história de Fio Regále, que levava uma vida anônima e discreta até que, por causa de uns quadros que pintou - e que caíram nas graças de um grande mecenas - é alçada de um dia para outro ao status de celebridade: galerias, entrevistas coletivas, matérias nos jornais, artistas e críticos, enfim... fama. O enredo pode parecer bem banal, mas nas mãos de Martin Page nada é banal.
Para começar, Fio é filha de uma assaltante de bancos e de um ex-policial que largou a farda para ser criminoso junto com ela. Como os dois vão parar na prisão, Fio vai morar com a avó, uma cigana excêntrica e amorosa, num trailer; quando esta morre num incêndio, a menina, então com nove anos, vai para o orfanato. Já adulta, ela passa a morar num edifício de 24 apartamentos, onde 23 são ocupados em sistema de rodízio aleatório pela dona do edifício e sua melhor amiga, Zora. Fio tem que se virar pra ganhar dinheiro e o faz de forma ilícita, até que conhece Ambrose Abercombrie, o homem que muda sua vida.
Martin Page faz de uma forma entre melancólica e irônica um retrato do mundo das artes e suas figuras megalomaníacas, esnobes e vaidosas e os efeitos desse universo na jovem sensível e discreta que é Fio.
O título se refere a um momento que Fio teve quando criança, numa pré tempestade, quando uma libélula pousou em sua mão, deixando-a encantada. Sua avó tinha lhe dito um dia: “(...) é preciso encontrar uma forma em função da qual se possa viver. Pode ser uma canção, uma imagem fluida, pode ser qualquer coisa, a música do sorveteiro, uma lembrança, um perfume, mas é preciso encontrar essa forma.” A de Fio era esse instante com a libélula.
Sei que é pedante dizer que algo não é para todo mundo, mas tenho que ser sincera: este livro é muito interessante, poético e original; é uma leitura que eu amei ter feito, mas é para poucos.
“Até os nove anos de idade Fio achava que morava num palácio. Depois, a experiência com o mundo e com seus colegas ensinou-lhe que seu castelo se chamava B, A, R, R, A, C, Ã, O, e, sem querer, começou a sentir vergonha daquele reino cuja luz não conseguia nem fazer as pálpebras das pessoas de bem se levantarem. (...) Ela chorava longamente e fortemente, não porque descobrira que era pobre, mas por ter vergonha de sua vergonha de ser pobre.”
“Agora, sentia falta de sua pequena infelicidade intermitente, tão normal e mesclada com risos. A nova e enorme felicidade não tinha o mesmo valor.”