Procyon 22/06/2022
Desmembrando os pressupostos
O cinema alemão não existiu a partir do expressionismo. A Alemanha, ao contrário de outros países como França e EUA, não ocupava-se em produzir uma tecnologia de reprodução fotográfica do movimento. Em outubro de 1895, os irmãos Skladanovsky já criavam o bioscópio, aparelho semelhante ao cinematógrafo dos Lumière ? exibido em dezembro, em Paris ?, contudo, em seus primeiros 20 anos, o cinema alemão teve um desenvolvimento mais lento do que outros países europeus. Até meados de 1911, por exemplo, o país produzia apenas 10% dos filmes exibidos ali, e ainda assim foram realizadas inúmeras fitas de diferentes orçamentos e gêneros. O que prejudica um conhecimento mais aprofundado a respeito é a falta de material de investigação, visto que muito se perdeu durante a grande guerra. Alguns filmes desse período de Weimar já prenunciavam a morbidez do cinema expressionista.
Mais ou menos nesse período, diretores como Fritz Lang, Max Reinhardt, Ernst Lubitsch, F.W. Murnau, e Billy Wilder já estabeleciam os padrões de uma nova forma de arte que florescia. Todavia, muitos deles migraram para Hollywood nas décadas de 1920-30, cooptados pelos grandes estúdios ou por receio da ascensão de Hitler ao poder. Curiosamente, os filmes mais aclamados desses diretores exemplares ? como ?Metrópolis? (1927), ?M, o Vampiro de Düsseldorf? (1931) e ?Nosferatu? (1922) ? foram rodados na Alemanha. Este período obteve grande prestígio internacional e causa fascínio até hoje.
Siegfried Kracauer acompanhou a trajetória da cinematografia alemã e fez análises contundentes sobre seus aspectos políticos e culturais. Migrou para os EUA em ?33, fugido do nazismo, e lá publicou sua obra decisiva sobre o expressionismo: ?De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão? (1988). O estudo parte do cinema para analisar o espírito de uma época e conclui que os personagens doentios dos filmes já prenunciavam os tempos sombrios subsequentes.
Kracauer fora uma figura de vulto na vida intelectual alemã. Judeu liberal, pensador de esquerda, arquiteto de formação e avesso a toda e qualquer filiação política ou ideológica, repartiu a sua obra pela filosofia da cultura, sociologia e pela teoria do cinema e da fotografia. Foi editor e redator de crônicas, e destacou-se pela análise empírica de aspectos da vida cotidiana na sociedade moderna. Exilou-se na França, entre 1933-41, e depois nos EUA A sua obra heterogênea, a marginalidade de que fez ponto de honra e um pessimismo lúcido, ao abrigo de radicalismos, convertem-no num teórico indispensável da primeira metade do século XX.
Neste estudo, ele faz um panorama histórico e sociológico do cinema alemão do final século XIX até meados dos anos 30. Sua tese consiste na afirmação de que ?filmes de uma nação refletem a sua mentalidade de maneira mais direta do que qualquer outro meio artístico?. Ele reforça isso na medida em que argumenta que esse cinema dos anos 20 prenuncia a ascensão do nazismo. O autor também faz uma associação entre o desenvolvimento de uma nova classe média, uma relação entre os valores desta e os democráticos propostos pela República de Weimar e de como se deu a adesão aos ditames do nazismo, tornando-se uma de suas principais apoiadoras do Terceiro Reich.
A obra de Kracauer, como ele mesmo diz, não se limita a uma análise desse cinema, mas visa ampliar o conhecimento geral do país nos anos que precederam o surgimento de Hitler e as tendências psicológicas que influenciaram o curso dos acontecimentos. Dessa forma, pode-se perceber uma análise sociológica madura, baseada em pesquisas empíricas e que foge da instância idealista. Nessa análise, a dimensão histórica se faz muito importante na medida em que se busca compreender os dispositivos psicológicos que compuseram a nação. Assim, os filmes não são produtos individuais, mas obras culturais que obedecem às demandas de uma sociedade, isto é, de um coletivo. ?O que os filmes refletem não são tanto credos explícitos, mas dispositivos psicológicos ? essas profundas camadas da mentalidade coletiva que se situam mais ou menos abaixo da dimensão da consciência? (p. 18).
Ele traça elementos, como a submissão de rebeliões, a autoridade, a anarquia e violência, mostrando-os como temas pictóricos que permeiam todos os filmes produzidos no período analisados pelo autor. Há, nesse período, um congelamento de discussões de caráter democrático ou que tragam temas relevantes para se pensar o próprio estado social das novas classes proletárias que surgiam como resultados dos desdobramentos do processo da modernidade.
Com ?O gabinete do Caligari? (1920) se estabeleceu o estilo expressionista no cinema, numa tentativa de representar a forma como o totalitarismo vem de fora de maneira sobrenatural e acaba com a paz dentro de uma comunidade coesa. Assim também é com ?Nosferatu?, do formidável Murnau, que transmite, como outros supracitados, uma alegoria do totalitarismo que surge tal como uma ?praga?, representada nesse estrangeiro mórbido (leia-se, o conde Orlok), dado como um complexo misto de algoz e vítima. Outros clássicos, como ?Metrópolis?, ?O Anjo Azul? (1930) e ?M??, também se mostram como exemplos do comportamento regressivo apontado pelo autor.
Kracauer procurou mensagens psicológicas nos filmes alemães, recorrendo para tal a psicanálise freudiana, analisando o que estava oculto, não o que era evidente nesses filmes ? o que estava além do quadro visível, no subconsciente da significação. Por outro lado, ele examina o cinema como um veículo de comunicação de massa, quase como um caleidoscópio da consciência coletiva ? e de seu subconsciente. Assim, ?Caligari?? é um atestado de que aqueles humanos ?precisavam de uma força superior para conduzi-los? ? inclusive, a questão da transgressão da ideia original de Carl Mayer e Hans Janowitz (que viram a ?morte cansada? das trincheiras bem de perto) também é (bem) exposta.
O sociólogo ainda constata que, nos filmes alemães, havia mais assassinos, tiranos, cientistas loucos, figuras paternas autoritárias do que nos filmes de outros países do mesmo período. É natural de se indagar de onde vem essa fascinação por violência, manipulação e hipnose. Kracauer faz isso, questiona essas figuras metafóricas e destrincha com eloquência esse cinema e seus mais diversos aspectos internos ? e externos.
É evidente que seria extenuante analisar cada uma das ações e reações, mas aqui basta dizer que a nação de Weimar era um turbilhão, em ritmo tresloucado, de nacionalistas, anarquistas, comunistasz e tais todos com sentimento de que foram traídos pelos líderes que assinaram rendição incondicional. Além disso, já havia um forte movimento antissemita pairando ? vide figuras como Wagner, por exemplo, que se mostrava um antissemita enquanto resgatava o folclore germânico em suas óperas descomunais. O país era, então, predador à espreita da caça e, ao mesmo tempo, uma presa fácil de todos os efeitos colaterais impostos em Versalhes.
[Continua nos comentários]