Marker 11/03/2017Curioso como durante a rápida pesquisa sobre A Lua Vem da Ásia encontrei raras citações que o associavam com Cândido, aquela pequena-grande-schadenfreude-clusterfuck-irmãos-coen-comédia-de-erros, onde um pobre e ingênuo coitado sofre todas as coisas mais horríveis que alguém pode imaginar, mas segue acreditando piamente que "este é o melhor dos mundos". Lançado por Campos de Carvalho em 1956, Ásia pode não ser a versão brasileira e marginal da tragicomédia do francês, mas faz empréstimos polpudos deste. Formado advogado e tornado escritor, Campos muito infelizmente caiu na vala da "escrita marginal", que hoje em dia não me parece nada além de um imenso guarda-chuva onde se apinham todos e quaisquer artistas que usavam a palavra 'cu' ou descreviam sexo como uma pulsão violenta da carne, e não como uma experiência religiosa e moralizante; ou seja, um punhado de gente.
Presença discreta nos círculos literários durante sua época de criação mais firme, que data mais ou menos de 41 a 64, Campos desapareceu do olhar público e morreu em paz em 1998, deixando cinco romances, um livro de ensaios, e esparsas colaborações em publicações como O Pasquim. O fato é que, colocando em perspectiva, talvez fosse um texto realmente sensível para a opinião pública dos anos 50, o que incutiu em seu relativo anonimato. Relançado de tempos em tempos por alguma editora inteligente, lembro de ter conhecido a existência de seu trabalho quando foi homenageado pela FreePorto, feira literária anárquica que acontecia aqui pelo Recife.
Mas tentando focar neste, que aparentemente divide o posto de melhor escrito de Campos com o mais famoso O Púcaro Búlgaro, Ásia é um mergulho bastante vívido, ainda que não tão violento ou "marginal" como se queira fazer parece, na mente de Astrogildo, que já teve tantos nomes e viveu em tantos lugares, e que agora definha num hotel de luxo, que também é campo de concentração e sanatório. Impecável exercício de imaginação em seu esmiuçar de como funciona a mente de uma pessoa aparentemente acometida por um distúrbio psicológico, o comentário social proposto por Campos pode ser algo formulaico ou anedótico (os loucos tem melhor percepção da sociedade que aqueles ditos sãos), mas é levado à cabo com tanta vivacidade que é impossível não se deixar seduzir.
A questão do hotel/sanatório e a observação das vidas ali presentes remete um pouco as observações de Thomas Mann em sua Montanha Mágica, porém diferente do virtuoso alemão, o ritmo aqui é bem mais frenético e errático, costurando os relatos da vida no cárcere (as visitas da mãe, por exemplo, são passagens absolutamente geniais), com os devaneios sobre aventuras mirabolantes ao redor do mundo (como as vividas pelo citado Cândido), e finalmente a vida numa cidade de que não se sabe o nome, o hemisfério, ou mesmo a data presente. É triste que alguém com uma prosa tão acessível, imaginativa, e sobretudo bem-humorada mesmo ao lidar com temas tão específicos e duros seja relegada ao gueto por fugir aqui e ali de um padrão vigente. Ao menos, sempre há alguém -e uma editora consciente- disposto a fazer com que seu nome não desapareça.
site:
http://www.pipoescreve.com/2017/03/luaasia.html