Claire Scorzi 09/05/2011
Hipólito, uma lenda ateniense
Meu primeiro contato com o teatro grego clássico foi na faculdade. Aos 19 anos, li Édipo Rei, Antígona e Prometeu Acorrentado. Nada aconteceu; nenhum estalo. As tragédias gregas entraram no arquivo "não-vale-a-pena-ler". Julguei-as superestimadas.
Há poucos anos, não sei o motivo, fui ler Eumênides de Ésquilo. Minha perspectiva modificou-se, e, no decorrer do último ano, as peças gregas clássicas saíram do arquivo desprezível; entraram definitivamente em outro, "obras-a-ler". Pus-me a ler todas em que pude pôr as mãos.
Hipólito de Eurípides tem como assunto a mesma lenda ateniense que irá inspirar Racine no século XVII em Fedra. Hipólito é o filho de Teseu e tem como madrasta Fedra. A paixão dela pelo jovem trará a desgraça para ambos. Por tratar-se de uma história que todos conhecem, o que faz o interesse na peça de Eurípides é observar a maneira como ele dispõe os elementos; nisto é que fica visível sua habilidade e domínio dos recursos do gênero dramático.
Na sua versão, Hipólito, o enteado, e Fedra, a madrasta, jamais se enfrentam em cena - o momento em que a paixão de Fedra é revelada ao jovem dá-se através de uma criada, que sonda os sentimentos de Hipólito; Fedra os escuta escondida, fora da cena. Uma sutileza do autor? As duas personagens mais importantes da peça nunca contracenam embora tudo que lhes aconteça os relacione um com o outro.
Caluniado pela madrasta, Hipólito é renegado pelo pai, e acaba por sofrer um acidente; agonizante, ouve Teseu contar-lhe que descobriu seu engano e pedir seu perdão; então, o jovem morre.
Simples? Parece. Mas, espere. Hipólito é apresentado como um rapaz virtuoso, que cultua a deusa Artemis, deusa da caça e da virgindade; não se interessa por mulheres, só quer saber de caçadas; faz questão da pureza a fim de ser um seguidor fiel de Artemis e, por isso, irrita Afrodite, que para castigá-lo inflama Fedra de desejos pelo enteado. Eurípides o coloca em cena louvando a castidade - e a si mesmo. Por toda a peça, vemos Hipólito afirmando a própria inocência em relação à madrasta (o que é verdadeiro) e a própria pureza. E é aqui, nessa insistência de Eurípides, que repisa as falas autocentradas de Hipólito, que a peça parece menos evidente, mais tortuosa: estaria o autor do lado do filho de Teseu? O jovem é casto, nós o cremos (nenhum momento da peça o desmente, e a lenda na qual se baseou afirma-o); contudo faz demasiado o elogio de si mesmo. E fica-nos a suspeita do que Eurípides pode ter pretendido nos dizer com esse acréscimo. Artemis, a deusa da caça e da virgindade, e Afrodite, a do amor e da sensualidade, são as figuras motoras da peça - uma, que incita Fedra, a outra, que intervém para revelar a Teseu seu erro. No tratamento dado às duas (e ao que elas representam), porém, Eurípides não parece tomar o partido de nenhuma, mas, talvez, censurar à sua maneira o perigo de seguir fielmente qualquer das duas.
Críticos e estudiosos da obra desse trágico grego afirmam que ele não cria em nada, que era incapaz de comprometer-se; cinicamente - quem sabe? - Eurípides pode ter concluído, e usado Hipólito para dizê-lo, que é difícil ser virtuoso sem auto-elogiar-se.