jefftavaresjuni 12/08/2017
Quase duas décadas atrás, em um fim de semana qualquer, estava eu na casa de uma de minhas tias maternas, aquela que pela proximidade física, bem como pelas conexões emocional e (por que não?) intelectual foi a mais presente na minha formação durante meus primeiros anos.
Eu devia ter entre sete e nove anos, não posso afirmá-lo com exatidão, mas, por ter crescido num núcleo familiar altamente politizado, sabia (ou intuía?) que essa tia era progressista, possuía uma personalidade com tendência revolucionária, um quê de rebeldia, propensão à subversão e lutava com afinco pelo seu ideal de justiça. No meu raciocínio infantil pouco refinado, eu simplesmente a percebia como alguém "de esquerda", sem qualquer julgamento de valor.
Recordo-me vagamente que assistíamos a um filme e do qual apenas duas cenas, eu viria a sabê-lo depois, ficaram gravadas com toda sua nitidez em um lugar recôndito na minha memória. Ambas retratavam o abuso sexual de uma personagem feminina pelo mesmo homem em dois momentos distintos: em sua infância e tempos mais tarde, já na idade adulta. As duas situações me causaram asco. A primeira delas, pelos sentimentos de impotência e aflição que a vulnerabilidade de uma criança e o contraste físico perante um adulto, principalmente do sexo masculino, podem despertar. A segunda, num contexto diferente, colocou-me em contato com a crueldade, a vingança, o ódio e a tortura.
Anos se passaram até que cai em minhas mãos o livro "La casa de los espíritus", da aclamada escritora chilena Isabel Allende. O fascínio foi imediato pela escrita fluida e pelo estilo similar ao de Gabriel García Márquez, um de meus autores favoritos e grande expoente daquilo que se convencionou chamar "realismo mágico".
Mentes intuitivas e personalidades sonhadoras são atraídas magneticamente pelo espiritualismo emanante a cada página e facilmente seduzidas pela excentricidade das situações e personagens de um livro de realismo mágico.
'La casa de los espíritus' é um romance sobre a passagem do tempo, o contato com o Além, a indignação contra as injustiças e misérias, a revolta contra as mais diversas formas de opressão (machismo, desigualdade social, autoritarismo etc), mas também sobre o ato de escrever como instrumento de busca do autoconhecimento e de enfrentamento dos demônios interiores que cada um de nós carrega consigo.
Existe um filme de 1993, que conta com a atuação de atrizes famosas como Meryl Streep e Winona Ryder, baseado nesta obra. Obviamente, mais de quatrocentas páginas não podem ser contadas em duas horas sem que muito do que é relevante se perca ou pareça desconectado e sem sentido. Inevitavelmente, são necessárias - e geralmente feitas - adaptações ao enredo, por vezes descaracterizando-o. Aqui estamos diante de um destes casos. Foi este o filme que vi há aproximadamente vinte anos em uma abafada tarde de domingo, do qual eu não lembrava sequer o nome, mas que havia marcado vividamente minha lembrança com aquelas fatídicas cenas.
Isabel Allende praticamente transforma a segunda metade do seu livro em um panfleto, abandonando quase por completo o realismo mágico, transformando-o em um "realismo cru", ao retratar com maestria o ambiente sociopolítico que precedeu o golpe militar no Chile, no início da década de 1970, e ao descrever o horror das torturas, desaparecimentos e matanças que se seguiram à tomada de poder pelos militares.
Seu livro é uma ode à liberdade, ao amor livre, à resiliência das mulheres e um relato fiel do que pode acontecer quando as camadas mais abastadas de uma nação procuram manter seus privilégios a todo custo. Na busca pela perpetuação do statu quo e pelo antiquado lema "lei e ordem", ver com bons olhos (ou até estimular) a ascensão das Forças Armadas ao poder, solapando a democracia, significa vender a alma ao diabo, com consequências funestas inclusive para aqueles que apoiam o golpe.
É possível inferir que a história se passa no Chile pelas peculiaridades históricas , ainda que a autora não cite o nome do país uma única vez, mas seu pano de fundo é comum a qualquer país latino-americano, acostumados a quarteladas, neles incluído o Brasil de 1964. Com profunda tristeza, percebo que, mesmo tanto tempo depois, as sementes do autoritarismo e das soluções fáceis encontram terreno fértil em nosso país. Se não somos capazes de aprender com os erros do passado, que pelo menos a literatura nos liberte!