Antologia do Teatro Anarquista

Antologia do Teatro Anarquista Maria Thereza Vargas (Org.)




Resenhas - Antologia do Teatro Anarquista


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ECF 26/08/2016

Considerações sobre a peça A Bandeira Proletária
O teatro anarquista teve bastante força no Brasil  no início do século XX, com peças estrangeiras de início, devido a forte imigração naquele período, e no caso da peça aqui estudada, dos imigrantes italianos. Por sua influência, logo em seguida surgiram dramaturgos brasileiros e peças escritas em português, montadas e encenadas pelos próprios operários (RAMUS, 2009).
O movimento anarquista no Brasil se articulou sobretudo nos anos entre 1906 e 1920, período em que organizaram três Congressos Operários no Brasil, na cidade do Rio de Janeiro. Cria-se a partir de então uma expressiva imprensa operária militante (BATALHA, 2000), com o objetivo de difundir as ideias libertárias, mas como muitos trabalhadores da época ainda não sabiam ler, o teatro se apresentou como uma das melhores ferramentas de envolvimentos dos trabalhadores e de difusão das ideias anarquistas. Foram criados diversos espaços de articulação, como casas de cultura, para a formação intelectual/política e de apresentação dos artistas. As peças expressavam as principais orientações que os operários anarquistas queriam difundir na época para o conjunto da classe operária, como a condenação de problemas sociais candentes, tais quais o alcoolismo e os jogos de azar, que precisavam ser deixados de lado para não desviá-los da vida militante e da luta libertária.

“O teatro surge no cotidiano do operário como uma possibilidade de reflexão a partir do vislumbre daqueles que assistiam às encenações e se sentiam representados na personagem operária em cena. O “se ver” provocava inquietação, indignação, e assim, ia se formando o sentido de pertencimento ao grupo, à classe operária.” (MIRANDA, 2014, p.29)

Bandeira Proletária é uma peça de teatro representada pela primeira vez em 1922, no Salão das Classes Laboriosas em São Paulo, escrita por Marino Spagnolo, militante anarquista, de ano de nascimento e vida praticamente desconhecida. Sabe-se apenas que foi vidreiro e alfaiate, de origem hispânica, morador do bairro Belenzinho, em São Paulo. Provavelmente chegou à América como trabalhador imigrante na segunda metade do século XIX, trazendo consigo as ideias anarquistas e se transformando num militante operário, muito ligado à todos os problemas da classe trabalhadora e expressando nas suas peças as misérias impostas pela classe dominante (RAMUS, 2009).
A peça conta a história de Paulo, um operário que vive em um pequeno e simples quarto. É um personagem austero, traz consigo os problemas oriundos da vida militante operária. A peça transcorre em três atos. O primeiro ambienta-se em seu humilde quarto, com a entrada de seus companheiros de luta, que conversam sobre vários aspectos de suas vidas, desde o poema que ele acaba de escrever até os problemas do jogo e as brigas de bar por conta do álcool e outros elementos do cotidiano da vida de trabalho. Fernandes, um agiota, que apesar de sua posição social, representa a figura da classe dominante na peça,  também aparece em cena. Tem um diálogo com o protagonista em tom de ameaça, intimando-o a respeito de Rosa, a noiva de Paulo. Rosa representa a mulher explorada da época, que trabalha como lavadeira e tem uma relação conflitante com Gertrudes, mulher que a criou, e que aproveitando-se de sua posição “maternal”, exige-lhe sempre mais dinheiro para jogar. Percebe-se assim, a divisão sexual do trabalho, que relega à mulher o ofício predominantemente doméstico, sobretudo no caso das mulheres, operárias que empregavam seu trabalho para além da esfera privada, ou seja, vendendo sua força de trabalho (NOGUEIRA, 2004).
O segundo ato se passa dentro do bar da cidade, e expressa com maior nitidez a interação entre os operários. Paulo é preso na tentativa de organização de uma greve operária (VARGAS, 2009). Com seu noivo preso, Rosa é aliciada por Fernandes, o antagonista da peça, e passa a viver sustentada por ele. A primeira cena acontece no dia do trabalhador, em que os operários estão paralisados e expressam diversas opiniões sobre isso,  fazendo menção à lutas passadas, como a última greve operária, já mostrando o lado combativo desses trabalhadores, que pelo que se entende compõe a organização das lutas. No desenvolver das cenas, o que podemos observar são os amigos de Paulo preocupados com sua saída da prisão que ocorreria naquele dia, com receio de que a descoberta de que sua amada fora cooptada pelos valores dos privilegiados e que estava ao lado de Fernandes, o desanimasse da luta libertária. É pertinente o caráter moralista da peça, sobretudo em relação ao dinheiro, sendo tratado quase como um pecado capital. Paulo, já liberto, chega ao bar exatamente no momento em que se desenrolava um conflito entre seus camaradas e o agiota Fernandes. Neste momento da trama, chamamos atenção mais uma vez para o caráter moralizante da peça, expressa na crítica ao alcoolismo, evidenciado na figura de Lourenço que relata a necessidade de beber para esquecer das angústias da vida. O ato finaliza com a fuga de Fernandes e a descoberta de Paulo sobre a traição de Rosa.
Por fim, o terceiro ato  se passa na casa de Rosa e Fernandes, para onde Paulo vai após descobrir a traição. Nesta cena ocorre um enfrentamento entre Fernandes e Paulo, sendo uma alegoria dos conflitos sociais decorrentes da divisão da sociedade em classes. Este conflito acaba por resultar no disparo acidental de Mário, em meio a tentativa de Paulo de desarmar Fernandes. A cena ocorre de forma bastante dramática, com a trilha sonora do hino da Internacional, e com Rosa em uma redenção final, ao ser perdoada por Paulo, suplicando pela sua misericórdia.
Em poucas páginas, Spagnolo cria uma obra militante, nos apresentando uma diversidade de aspectos que enxergava na classe trabalhadora em sua constante luta pela emancipação. O conflito entre Fernandes e Paulo faz uma representação da luta de classes, na qual Paulo é a efígie do do ideal de homem operário, que não se corrompe pelos valores burgueses, e tem uma vida completamente voltada à luta pela emancipação dos trabalhadores, além de uma relação forte com os outros operários, seus companheiros a quem sempre atenta para os perigos do álcool e do jogo que pode desviá-los da militância operária, Fernandes, o seu grande opositor, é o representante da classe dominante, vive com luxo e tem valores morais decadentes, como se expressa na sua relação com Rosa. A cena final traz a morte do operário Mário sob o hino da Internacional e seu sangue representa todos os que morreram vítimas dos dominantes, aparecendo como um incentivo à continuidade da luta pela emancipação humana, como uma bandeira proletária.
Como afirmou Walter Benjamin nas teses “Sobre o Conceito de História”, a “escola do ódio” traz a imagem dos antepassados escravizados e seu espírito de sacrifício, sendo este o combustível para a vingar as “gerações derrotadas”. O teatro operário tem, neste sentido, a importância de nos trazer a empatia com os dominados, indo à “contrapelo” (para usar uma expressão de Benjamin) no “processo de transmissão da cultura”
Em “Arte e luta por uma nova civilização”, o filósofo da práxis, Antonio Gramsci, nos dá alguns elementos nos quais podemos nos fundamentar para melhor compreensão do Teatro Anarquista, e no nosso caso, da peça A Bandeira Proletária, ao escrever sobre o uso político da arte, em detrimento do seu valor estético: “No campo da crítica política, da crítica dos costumes, na luta para destruir e superar determinadas correntes de sentimentos e crenças, determinadas atitudes diante da vida e do mundo" (p.343). Ao longo da nossa análise, destacamos diversos aspectos de crítica à visão moralista, com que o autor encarava a problemática do alcoolismo e do dinheiro enquanto valores e costumes que precisam ser superados para que a "redenção dos desgraçados" chegue como "farol da redenção", nos termos do dramaturgo. No entanto, isso não anula o potente conteúdo político de uma peça, feito por e para operários.
ECF 26/08/2016minha estante
Referências:
BATALHA, Claudio. O movimento operário na primeira república. Rio de Janeiro : Jorge Zahar ed., 2000
BENJAMIN, Walter. Magia e tecnica, arte e politica: ensaios sobre literatura e historia da cultura. São Paulo, SP: Brasiliense, 1994
GRAMSCI, Antonio. O leitor de Gramsci: escritos escolhidos 1916-1935 / org. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2011
MENDES, Samanta Colhado. As mulheres anarquistas na cidade de São Paulo (1889-1930). 2010. 252 f. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de História, Direito e Serviço Social, 2010.
MIRANDA, C.F. O Teatro na voz Operária: Grupo Teatral Cultura Social e o Anarquismo em Pelotas - seus operários e suas palavras. 2014, 213p. Dissertação (Mestrado em Teatro). Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2014.
NOGUEIRA, Claudia Mazzei. A feminização no mundo do trabalho: entre a emancipação e a precarização. Campinas, SP: Autores Associados, 2004
RAMUS, Gustavo. Teatro e Anarquia. São Paulo, Verve, n. 16, 2011
RODRIGUES, Edgar. História do movimento anarquista no Brasil. Florianópolis: Editora Insular, 1999.
SPAGNOLO, Marino. A bandeira proletária. In: VARGAS, M. T. (Org). Antologia do Teatro Anarquista. São Paulo: Martin Fontes, 2009. p. 87-157.
VARGAS, Maria. Antologia do Teatro Anarquista, Introdução. São Paulo : Wmf Martins Fontes, 2009.




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