spoiler visualizarCarol 06/08/2019
Que leitura maravilhosa! Como foi fácil ler um romance de nada menos do que 892 páginas (edição da Martin Claret). Iniciei essa leitura sem muitas expectativas. Mesmo sendo Jane Eyre um dos meus livros favoritos, estava um pouco decepcionada após ler Villete, que achei entediante – apesar de, obviamente, ter diversas passagens dignas de nota. Não consegui me relacionar e simpatizar com a protagonista Lucy Snow, ela me pareceu muito apática. Além disso, convenhamos que a história se arrasta e não apresenta muitos fatos interessantes ou surpreendentes. Shirley – assim como a obra prima Jane Eyre – é o oposto, mesmo considerando que este último possui características literárias mais similares com Villete, já que ambos são narrados em primeira pessoa e acompanham a evolução da personagem principal.
Shirley já inicia inovando pela narrativa, conforme dito, em terceira pessoa e sob diversas perspectivas, o que não era comum nos romances da época. Tal característica, ao contrário de deixar a obra confusa ou monótona, conforme alguns críticos (mencionados no prefácio dessa edição), mas sim interessante, diversificada e rica. São abordados os pontos de vista de diversos personagens, muito diferentes entre si, o que nos fornece um panorama completo e informativo sobre a sociedade e os problemas decorrentes da guerra e da revolução industrial que servem de fundo para a história.
Além disso, as histórias de amor que centram a história são maravilhosas, como já era de se esperar de uma Bronte.
Confesso ter ficado confusa com o porquê de o romance se titular Shirley, já que esta personagem não é a única principal da história, mas sim divide – e, na minha opinião, até perde – o posto para a outra mocinha, Caroline Helstone. Talvez isto decorra do fato de que os eventos principais se desenrolam após a chegada da personagem título.
Como era de se esperar de um romance da Charlotte Bronte, Shirley é recheado de passagens excepcionais, verdadeiras lições de vida, moral e virtude, assim como expressam de maneira única e real os sentimentos de dor e tristeza do ser humano. Seguem algumas das minhas favoritas:
“A vida se esgota rapidamente em tais vigílias como as que Caroline mantivera com tanta frequência recentemente – vigílias durante as quais a mente, não tendo nenhum alimento saboroso para nutri-la, nenhum maná de esperança, nenhuma doçura de lembranças deleitosas, tenta sobreviver com a mísera dieta dos desejos e, não conseguindo extrair dela nenhum deleite ou conforto, e se sentindo prestes a perecer com a ânsia desesperada, se volta para a filosofia, a resolução, a resignação; suplica todos esses deuses por auxilio, clama em vão – não é ouvida nem ajudada, e definha. (p. 490)”
“Leitor! Quando você observa um semblante sempre melancólico e carrancudo sem saber a razão disso, e cuja nuvem permanente o exaspera pela sua aparente gratuidade, pode ter certeza de que há um tumor em algum lugar, e um tumor que não deixa de corroer profundamente por estar oculto.” (p. 260)
“Ah! Eu sei”, prosseguiu ela, “essa é a pergunta que todas as solteironas tem dificuldade em responder: outras pessoas a respondem para elas dizendo: ‘O seu lugar é fazer o bem para os outros, ser útil sempre que precisam de ajuda’. Isso é verdade até certo ponto, e é uma doutrina muito conveniente para as pessoas que a sustentam, mas eu noto que alguns grupos de seres humanos são muito propensos a dizer que outros grupos devem dedicar sua vida a eles e ao serviço deles; e então dizem que ele são dedicados e virtuosos. Isso é suficiente? Isso é viver? Não há um terrível vazio, zombarias, carência, ânsia, nessa existência cedida aos outros por falta de algo seu a que a entregar? Eu desconfio que há. A virtude reside na abnegação da pessoa? Não acredito nisso. A humildade excessiva engendra a tirania, a concessão fraca gera o egoísmo. A religião católica ensina enfaticamente a renúncia de si mesmo, a submissão aos outros, e em nenhum outro lugar se veem tantos tiranos ávidos de controle quanto entre os padres católicos. Cada ser humano tem a sua cota de direitos. Eu desconfio que, se cada um soubesse qual é a sua e se apegasse a ela com tanta tenacidade quanto o mártir ao seu credo, isso levaria a felicidade e ao bem-estar de todos. Pensamentos estranhos, esses que surgem na minha mente? Eles são razoáveis? Não estou segura.” (p. 252/253)
Os comerciantes, quando se manifestam contra a guerra, sempre professam odiá-la por ser um procedimento bárbaro e sangrento: ouvindo-os falar, você pensaria que eles são peculiarmente civilizados – sobretudo pacíficos e amigáveis com seus concidadãos. Não é isso que acontece. Muitos deles são extremamente tacanhos e frios de coração, não tem bons sentimentos para nenhuma classe além da sua, sendo distantes e até mesmo hostis a todas as demais; chamam-nas de inúteis e parecem contestar o direito dela de existir; parecem se ressentir do ar que elas respiram e considerar injustificável o fato delas comerem, beberem e viverem em casas satisfatórias. Eles não sabem o que os outros fazem para ajudar, agradar ou ensinar sua classe; não se preocuparão em investigar; quem não estiver no comércio será acusado de comer o pão da preguiça, de viver uma existência inútil. Que ainda se passe muito tempo antes de a Inglaterra realmente se tornar uma nação de comerciantes!”
SPOILER ALERT.
Agora comentando um pouco sobre a própria história, que me fascinou profundamente. Ambas as personagens principais, Caroline e Shirley, são adoráveis e de bom caráter, mesmo tendo atitudes confusas e que deixam o leitor apreensivo ao longo da obra. Por exemplo, me perguntei diversas vezes porque Caroline não demonstrou seu amor desde o início para a amiga, o que permitiu que esta agisse de forma imprudente e enganadora (para os leitores e demais membros de Yorkshire) com o Robert Moore, primo e dono do coração daquela. Claro que, depois descobrimos, Shirley estava muito envolvida em seu próprio coração e próprios sentimentos decorrentes de seu amor pelo irmão de Moore, que, descobrimos mais tarde, havia sido seu tutor e de seu primo mais novo, anos antes. Se ambas tivessem sido mais honestas, talvez a cólera de Caroline, que quase a matou, decorrente da indiferença de Moore – que estava muito ocupado com seus problemas financeiros, e da crença de que este iria se casar com Shirley, talvez não tivesse sido tão grave. Obviamente, não teria dado uma história e leitura tão agoniante e excepcional.
Ainda temos a revelação dramática da verdadeira identidade da Sra. Pryor, revelada na hora perfeita, como a mãe há muito tempo não vista de Caroline. Digno de um romance gótico, característica recorrente nas obras de Charlotte. Mesmo sem muitos detalhes, foi possível entender a história por trás do abandono, o que me fez querer ter um outro livro que contasse a vida e muitas tristezas da Sra. Pryor.
E tudo isso complementado por situações e fatos que explicitam os graves problemas sociais que ocorriam na época, com a Revolução Industrial e a guerra com a França deixando a situação econômica da Inglaterra em maus lençóis, principalmente as classes mais baixas, conforme brilhantemente narrado na obra.
Concluo com a recomendação forte deste romance da minha irmã Bronte preferida.