Rolando.S.Medeiros 04/07/2022
Apenas uma Mulher - A Imagética da Raposa e o Abismo da Felicidade
''Elas continuavam animadas, andando pelo pátio, sem nem olhar para o lado do galinheiro antes das 22 horas ou mais. Banford e March não gos
tavam de viver só para o trabalho. Elas queriam ler, ou andar de bicicleta à noite, ou talvez March quisesse pintar cisnes curvilíneos em porcelana, com fundo verde, ou então fazer um bonito para-fogo pelo processo de carpintaria artística. March era uma criatura de caprichos incomuns e tendências insatisfeitas.''
Nas minhas andanças por uma thread de literatura, de um site verde que não vale a pena ser mencionado, deparei-me com uma lista de recomendações que agregava todos os ranqueamentos feitos ao longo de praticamente uma década; aqueles livros que mais tempo permaneciam na lista — sempre em constante mutação — angariavam mais pontos e entravam na tal tabela agregada e supostamente definitiva. Decidi encarar; e como fazem todos aqueles que batem bem da cabeça, comecei pelo final: Apenas uma Mulher e Outras Histórias, do D.H Lawrence, tido pelo Carpeaux como um bom escritor, corajoso, apesar de polêmico e certas vezes desmedido. É dito, inclusive na diminuta introdução dessa edição, que ele possui uma abordagem bem pessoal da sexualidade e do erotismo na literatura, característica que o fez mais de uma vez ser censurado na Inglaterra do Século XX. Enveredou por um estilo que viria a atingir seu ápice com o Joyce, diz o crítico, resumidamente. Descobri também, que esse livro foi adicionado na edição mais recente do polêmico ''Mil e Um Livros para Ler antes de Morrer'', outra lista problemática caso seja tida como definitiva; ou seja, para a minha infelicidade, seguindo uma lógica ilógica, estou um livro mais próximo da morte. Mas, chega de enrolação.
The Fox, ou, Apenas uma Mulher, como foi traduzido, é uma novela psicológica de noventa e poucas páginas; a decisão da tradução do nome, percebe-se após a leitura, mostra ser deliberada e dotada de significado: é evidente a mudança completa na narração do terço final do livro. A Raposa, portanto, se traduzido ao pé da letra, trata-se da maior e melhor parte do livro; enquanto Apenas uma Mulher, trata-se de seu desfecho, que se difere em forma. Apesar de ser possível tratar ambas dessa forma separada, na leitura, no entanto, as partes são inerentes e indissociáveis uma da outra.
A Raposa, representa a construção narrativa, a imagética do animal, a vida serena (mas não fácil) de duas mulheres em uma pequena fazenda durante o final da Primeira Guerra Mundial. Somos lentamente inseridos na vida dessas duas personagens, com uma construção lenta e limitada pelo narrador que só nos revela petiscos de informação, num slow burn gostoso.
''As árvores da orla da mata eram de um verde-escuro pardacento à luz do sol, pois era fim de agosto. Mais além, os troncos esguios dos pinheiros, com seus galhos, brilhavam no ar. Por perto, o capim áspero, com seus longos talos, era uma festa de luz. As galinhas ciscavam em volta, e os patos ainda nadavam no tanque debaixo dos pinheiros.''
Tudo muda, no entanto, quando Nellie (a mais trabalhadora, mulher forte e carpinteira) começa a ser perturbada por uma raposa — ou, uma palavra melhor, mesmerizada. O olhar da raposa penetra sua alma, invade seus sonhos, e ela torna-se idílica, obcecada pelo animal, a prosa aqui, adquire um tom poético, sobrenatural, quase místico, e tenho-me como a melhor parte da novela:
''March olhava tudo isso, via tudo isso, mas na verdade não percebia nada. Ela ouviu Banford conversar com as galinhas lá longe — mas, na verdade, não ouviu. O que estaria ela pensando Ninguém sabe. A consciência de March estava, por assim dizer, em suspenso.
Ela baixou o olhar e, de repente, viu a raposa. O animal a encarava. O focinho estava abaixado, mas os olhos, erguidos. Os olhos da raposa e os da moça se encontraram. A raposa a reconheceu. March ficou sem ação. Ela percebeu que a raposa a reconhecera. O animal olhou March nos olhos, e ela
sentiu que a alma lhe fugia. A raposa a conhecia, e não estava intimidada.''
Esse tom se estende, inclusive durante a chegada inesperada de um soldado de dezoito anos na casa. Curiosamente, vulpino, educado, e confuso. A partir daí, somos levados num mergulho psicológico, de questões de gênero, repressão sexual, ciume, tensão (mental e carnal); e, também, é a partir daqui que Lawrence se despende dando mais desenvolvimento aos personagens. A reta final da novela, no entanto, demasiadamente (e desnecessariamente) acelerada, faz parecer que não, mas os personagens são construídos com vida e sentimentos próprios, ambíguos, intimamente complexos, um ponto que dou para o Lawrence.
No meio dessa ''fábula'' moderna, da materialização da expressão idiomática (the fox in the henhouse, que já dá pistas do desfecho), da imagética, da forma, do estilo, ainda há, além disso, uma história sobre dependência, submissão, ideal de felicidade e sua inalcançabilidade. É trágico, o Lawrence não toma partidos, e não exime ninguém da culpa. Ele se mantém afastado, e faz-nos vislumbrar o abismo, o falso contentamento, o revés que é a felicidade depender de fatores externos, para tristeza dos personagens, e também nossa.
''Se Jill tivesse se casado, seria a mesma coisa. A mulher se esforçando para fazer o homem feliz, esforçando-se em seus próprios limites por fazer o bem-estar de seu mundo. E sempre colhendo fracassos. Pequeninos sucessos úteis relacionados a dinheiro e carreira. Mas justamente no ponto em que o sucesso era mais desejado, no angustiado esforço de fazer algum amado ser humano feliz e perfeito, aí o fracasso era mais catastrófico. Queremos fazer o ser amado feliz, e a felicidade dele parece sempre atingível. Basta fazer isso, isto e aquilo. Fazemos isso, isto e aquilo com toda boa-fé, e, de cada vez, o fracasso parece mais horrível. Podemos nos dilacerar de amor e nos desgastarmos até os ossos, e as coisas vão sempre de mal a pior, de mal a pior na busca da felicidade. O terrível engano da felicidade.''
Justamente por se manter afastado, nunca detalhar além do necessário, nunca sabemos se Nellie e Jill são um casal sáfico, um casal bissexual, ou apenas amigas íntimas que se unem na independência, um dos temas da novela (minha interpretação vai por esse lado). Abrem-se as interpretações, o que é bom, de certa forma; de outra, abre caminhos idealizados exageradamente — mais por culpa dos leitores do que da obra — que na minha humilde concepção, não estão lá. Por exemplo, não entendo as múltiplas resenhas aqui no site que pontuam a história como misógina. É explicito, literal, que o Henry é vil, dotado de sentimentos amorosos, que são ao mesmo tempo honestos e disformes, mas com uma visão terrível, manipulador, possessivo, premeditado, para fins amorosos e materiais, a personificação da raposa fábular que adentra a choupana e devora as galinhas; a maneira com que é narrado apenas demostra a acuidade com que o Lawrence constrói as personagens; e, nem com a invasão final de um narrador onisciente (que por sinal quebra a narrativa e se torna um problema fruto da perda de fôlego da prosa), e o longo monólogo final, onde o narrador, cristalina e transparentemente explora a passos largos a psique dos dois personagens, as pessoas não conseguem entender, ou dissociar o personagem literário do escritor, ou a narração da opinião; chega a ser alarmante e problemático, exemplifica que o analfabetismo literário persiste, e obviamente não só no Brasil, já que todas resenhas que seguem essa linha foram escritas em inglês.
''Quanto mais estendemos a mão para a flor fatal da felicidade, que balança tão azul e linda numa fenda logo adiante, com mais pavor percebemos o perigo do precipício terrível, no qual inevitavelmente cairemos se nos esticarmos um pouco mais. Vamos apanhando uma flor após outra — e nunca apanhamos a flor. A flor mesma — seu cálice é um abismo horrível e sem fundo. Essa é a história da busca da felicidade, seja a nossa, seja a de outro por nós buscada. Ela termina, como sempre, na sensação apavorante daquele nada no qual inevitavelmente cairemos se nos esticarmos um pouquinho mais.''
Por fim, algumas notas adicionais e aleatórias: foi lido numa sentada, ou melhor, numa deitada; a tradução é de um famoso autor brasileiro, J.J Veiga, que achei bastante boa, como verá pelas quotes, no entanto, lendo as citações em inglês, senti que no idioma original flui muito melhor a aura de ''fábula recontada'', de misticismo, de prosa poética, e, além disso, não é nada complicado de ler, ao menos foi o que me pareceu, para os próximos do autor vou buscar a versão original; a fama de escritor polêmico, da sexualidade exagerada e mão pesada, é pouquíssimo vista aqui, que faz com que provavelmente seja uma boa porta de entrada para o autor, meus problemas com a história foram unicamente estéticos, de construção, e não temáticos, geralmente a crítica que se faz a ele é inversa a minha; inicialmente daria três estrelas, mas escrevendo a resenha, buscando as citações que anotei, lendo-as também no idioma original, e pensando sobre a história, resolvi subir uma estrela, apesar dos problemas, e da minha voz da razão me mandando marcar apenas três; obviamente, eu não entreguei tudo nessa resenha, o motivo da história traduzida se chamar ''Apenas uma Mulher'', por exemplo, você deve ler e descobrir.
É uma leitura válida, tanto pelo fruir literário quanto pela discussão suscitada, interesse-se você pela estética ou pelas questões mais filosóficas, de relação humana.
''Mas o fim do arco-íris é uma fenda sem fundo na qual podemos cair e ficar caindo para sempre, e o horizonte azul é um abismo de nada que pode nos engolir e engolir todos os nossos esforços, e ainda continuar vazio. Nós e nossos esforços. Eis a ilusão da felicidade atingível!'' (less)
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