Raul 13/11/2013
Laura de Mello e Souza em Desclassificados do Ouro faz uma análise dos indivíduos que se situavam fora das categorias sociais que ocupavam os extremos da sociedade colonial - senhores proprietários e escravos - e como eles se encaixavam nessa sociedade. A autora usa o termo desclassificados para enquadrar esses indivíduos à peculiaridade do sistema colonial, diferentemente de como se deu o processo de marginalização na Europa, visto que, a utilização do trabalho livre e o estabelecimento do capitalismo se dava de forma diversa naquela parte do mundo. É sabido que os desclassificados foram elementos presentes em toda colônia portuguesa na América, porém a configuração do surgimento desses indivíduos se deu de forma muito peculiar no contexto de Minas Gerais.
A autora se atém ao materialismo histórico e utiliza os conceitos infra-estrutura, superestrutura e ideologia como aporte para entender a dinâmica de engendramento dos desclassificados sociais.
A discussão da falsa riqueza feita no primeiro capítulo introduz as condições econômicas em que estavam submetidos os indivíduos da capitania. A distribuição desigual das lavras, o fisco, a tributação sobre os escravos e a dependência da importação através do exclusivismo comercial dificultava a acumulação de riqueza. A distribuição das lavras para a extração de ouro obedecia um lógica excludente, a maior parte se concentrava em mãos de uma minoria que possuía o maior número de escravos. Se esses indivíduos, mesmo privilegiados por esse sistema desigual, enfrentavam dificuldades em acumular riquezas o que se pode dizer da camada despossuída de bens e que não encontravam possibilidades de vender sua força de trabalho? O saldo que se tem é um modelo econômico assentado no escravismo e no impedimento dos desfavorecidos ao acesso às fontes geradoras de riquezas. Além disso, a escravidão impedia a utilização do trabalho livre, o que gerava ainda mais desclassificados e desqualificava o trabalho aos olhos dos homens livres.
As redes do poder evidenciavam como as autoridades controlavam os desclassificados e os utilizavam para suprir a demanda de serviços degradantes ou que não eram confiáveis aos escravos e eram tidos como um exército de reserva da escravidão. É discutida a relação do bônus como já foi dito acima, eram úteis para suprir algumas demandas desse sistema - e do ônus que ajudava a reforçar a ideologia da vadiagem e justificava sua utilidade, como também a possibilidade de deixa-los sem razão de ser. Além disso, a escravidão era justificada por essa ideologia, se a liberdade tornava esses indivíduos vadios, não havia razão para abolir a escravidão, pois ao liberta-los estariam aumentando a massa de vadios, o que seria um ônus para o sistema arcar, pois cometiam crimes, praticavam violência e consumiam víveres. Percebe-se assim, um sistema que os criavam, os utilizavam e os rejeitavam quando não apresentavam serventia.
A autora discute as proposições de Raymundo Faoro e Caio Prado Jr. acerca de como a administração metropolitana agia no Brasil e como essas proposições podem ser interpretadas no caso mineiro. Enquanto o primeiro trata da administração portuguesa como algo racional e eficaz o segundo evidencia as falhas cometidas. Fato é que tais aspectos encontram ressonância na colônia em níveis diferentes em cada contexto, já o caso de minas, a autora afirma a existência de um balancês entre a submissão e a autonomia ( eficácia e não eficácia da administração) frente a coroa, ou seja, ambas concepções (de Faoro e Prado Jr.) se encaixavam ao contexto da superestrutura mineira. A coroa via a necessidade de normalização das populações para estabelecer o seu controle e arrecadar os impostos. Em nenhuma parte da colônia o poder metropolitano esteve tão presente quanto nas minas. Todo o sistema contribuía para um circulo de inter-relações que reforçavam tal poder, os escravos fugidos, a presença dos desclassificados e o sistema econômico excludente que os conduziam a criminalidade gerava um clima constante de tensão. As elites recorriam ao poder metropolitano para manter a ordem, esse, por sua vez, lançava mão dos desclassificados para reprimir e deixar as camadas dominantes em segurança, ao passo que eles próprios eram deixados à própria sorte e ...entregues à injustiça, à iniquidade, à violência, originárias muitas vezes de seus próprios aparelhos.
A obra de Laura de Mello Souza se mostra importante ao tempo que revela um processo de exclusão econômica e social e a criação de uma ideologia da vadiagem. Se esses aspectos pertencessem ao passado e somente nele os encontrássemos, talvez hoje tal estudo não seria de grande valia. Partindo da máxima de que a história é fruto do seu tempo, o que fica evidente é a ressônancia histórica dessa análise muito presente no Brasil atual. Claro que tomando os devidos cuidados de perceber os contextos históricos, é visível nos discursos dos setores mais conservadores da atual sociedade brasileira a defesa de higienização social, e da questão da redução da maioridade penal como solução para a violência e a criminalidade. Mesmo tendo sido escrito no início dos anos 80 a obra aponta para problemas ainda atuais e sua análise ajuda na compreensão de um passado que criou uma sociedade autoritária, excludente e extremamente desigual que, entre outras coisas, acaba gerando o crime e a violência que são um dos assuntos em pauta como problemas sociais no Brasil.