Daniele 26/12/2023
Laurence Sterne, irritando seus leitores desde 1759
A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy é uma história sem começo, meio e fim. Escrita como uma autobiografia, Tristram Shandy, narrador e personagem principal, tenta descrever sua vida desde sua concepção ao longo das páginas. Tenta, e falha miseravelmente.
Logo no início do livro somos apresentados às personagens do pequeno círculo de convivência de Tristram, cada um com suas mais estranhas peculiaridades. Começando pelo pai de Tristram, descrito como alguém extremamente supersticioso e cheio de manias, como por exemplo a de dar corda no relógio todo primeiro domingo de cada mês. O curioso é que também deixava para esse mesmo período "outros pequenos cuidados familiares". Bom, a partir daí Tristram descreve sua atrapalhada concepção, que é interrompida por sua mãe perguntando ao seu pai se este já havia dado corda ao relógio. Tal fato é criticado por Tristram, já que a seu ver, essa ação deveria ser feita com muito mais cuidado e atenção, pois poderia definir ?talvez o seu gênio e a própria disposição de seu espírito?.
Ao seguir a história, somos então levados a diversas e infinitas digressões, recurso básico que será utilizado durante todo o livro, o que marcou a criação de Laurence Sterne como obra-prima, afastando-se dos gêneros literários em alta da época. As digressões, embora irritantes e confusas em primeiro contato, trazem o alívio cômico e a sátira que tornam o livro único e incrível. Tristram Shandy irá de fato nascer somente páginas e páginas a frente, póstera a uma longa narração que irá incluir o Tio Toby e seu companheiro Cabo Trim, também personagens cheios de manias e hobbies, os chamados ?cavalinhos de pau?.
Um diálogo em que particularmente quase chorei de rir foi um descrito na pagina 628, quando o Tio Toby pede para que o Cabo Trim conte a ?História do Rei da Boêmia e de seus sete castelos". Graças aos seus devaneios e discussões acerca dos detalhes, começam-se inúmeras tentativas falhas do Cabo Trim para conseguir contá-la. Chegamos então na página 652 com o seguinte diálogo:
"Que aconteceu com essa história, Trim??
?Nós a perdemos, com perdão de vossa senhoria, nalgum ponto do caminho"
Ou seja, as digressões e os devaneios foram tantos, que a história simplesmente se perdeu no meio do caminho sem ser finalizada, trazendo mais uma vez a jocosidade tão presente nessa obra.
Ao ler Tristram Shandy somos bombardeados por páginas em branco, asteriscos e travessões substituindo nomes e lugares, Tio Toby assobiando lilliburlero a cada 10 páginas, além de claro, as digressões sem fim. Definitivamente as vezes a vontade que dá é de jogar o livro pela janela, mas sem antes uma pausa para refletir sobre o quão genial ele consegue ser. É obvia a intenção de Laurence Sterne em causar essa reação nos leitores, e saber disso só mostra ainda mais a genialidade do escritor. É um livro que deve ser lido por sua excentricidade, com consciência e desejo disso. Não espere apenas uma simples história de comédia, pois vai muito além.
Minha felicidade em ver essa obra sendo lançada novamente foi imensa. Há quase 10 anos li um livro que continha uma citação de Tristram Shandy e fiquei obcecada com a ideia de ler esse livro. Não é de se esperar que ao perceber que na época os únicos livros a venda eram usados e caríssimos, minha reação foi a de extremo descontentamento e frustração, mas felizmente a editora penguin FINALMENTE resolveu comercializá-lo novamente.
Obrigada, editora penguin!
Dica: Ao ler o livro, por favor, ouçam Lilliburlero (ou Lillabullero, como preferir).