TrizRoss 05/02/2023
SIMPLESMENTE GENIAL
Não tenho nem palavras para descrever o quão boa é essa edição. Akutagawa é um dos melhores autores japoneses até hoje e essa seleção de contos é fenomenal, junto de uma ótima tradução e editoração. Um dos meus livros favoritos de todos, sem dúvidas. Cada conto possui muito conteúdo, trazendo críticas à sociedade da época que seguem pertinentes até os tempos de hoje, realizadas de forma excelente. Cada história te dá mais vontade de continuar lendo, trazendo uma construção incrível e desenvolvimento satisfatório. O prefácio traz uma análise muito bem feita da vida e dos contos de Akutagawa, implementando e enriquecendo a leitura dessa coletânea. Vou comentar brevemente alguns pensamentos sobre cada conto.
Kappa é um ótimo começo aos que estão sendo introduzidos à escrita de Akutagawa. É gostoso de ler e traz bastante críticas com um certo humor e farpas à hipocrisia da sociedade. Os kappas trazem continuamente várias questões filosóficas que fazem com que você pare em meio a leitura e provocam a reflexão. Além disso, mesmo que esse autor não seja tão autobiográfico quanto outros da época, como Dazai Osamu, esse conto tem um significado diferente se você lê sabendo sobre a vida do autor, possuindo várias referências aos seus próprios pensamentos e sentimento, o tornando ainda mais impactante. Ainda mais se considerar que ele foi publicado no mesmo ano em que Akutagawa se matou, revalando o quão cansado de viver naquela sociedade ele estava. O final deixa o leitor com a dúvida se o protagonista realmente era um doido que inventou tudo ou não. Seria possível fazer uma análise profunda sobre esse conto por si só, revelando a maestria de Akutagawa.
Rashoumon é um de seus contos mais famosos e o que deu início a sua carreira de escritor. Já é perceptível a habilidade de Akutagawa de abordar temas da ética humana. Mesmo sendo uma história curta, ela traz o dilema de moralidade e o ciclo das pessoas cometendo atos imorais contra as outras só pra acabarem sendo as próximas vítimas, além dos pensamentos internos do servo e as contradições morais dele serem muito bem escritas. Essas contradições fazem sentido, mostrando que o personagem muda dependendo de suas emoções e da situação presente, mais realista do que se ele seguisse uma decisão o conto todo e não a mudasse por nada. Mais um conto que promove reflexão e uma análise completa de páginas e páginas.
O Nariz é o conto que o fez ser reconhecido pelo mestre da literatura japonesa, Natsume Soseki. Portanto, possui uma grande relevância para sua carreira de escritor. O nome imediatamente traz à mente o conto de Nikolai Gogol, compartilhando certas semelhanças como o tema da imagem própria, reputação e o absurdo fantástico, porém ambos possuem execuções muito diferentes e certas diferenças, como o realismo ser mais presente no conto de Akutagawa, possuindo um peso diferente em cada narrativa. Dá a impressão de ser a história mais alegre e bem humorada da coletânea.
Destino deixa ainda mais explícito o debate moral com as próprias personagens falando em voz alta sobre o assunto. O principal desse conto são as várias antíteses e os conceitos contrapostos, como o velho ceramista x o novo samurai, tradição x modernidade, o interior x exterior da oficina, mito x verdade, materialismo x fé. Mais uma vez akutagawa traz vários pontos que fazem com que você pare e chegue nas próprias conclusões, na conversa final até podendo se colocar no lugar das personagens se perguntando se valeria a pena passar pelos aflitos que a moça passou em troca de uma recompensa material.
Salteadores é o maior conto dessa edição, trazendo várias personagens com um grande desenvolvimento. As relações das personagens, os conflitos internos e os cenários são muito bem descritos, dando a sensação de estar "lendo um filme". Mesmo sendo longo, não é entediante em nenhum momento, causando a vontade de continuar lendo para ver no que vai dar o conflito dos irmãos, o roubo da gangue e o plano da Shakin. A cena de luta é muito bem escrita, transmitindo bem o caos de uma batalha e o desespero daqueles envolvidos. A cena de Jiro com os cachorros é muito simbólica e introduz a reconciliação dos irmãos de forma excepcional. A cena do bebê revela ainda mais os contrastes das personagens, que xingam Akogi e se encontram ensanguentados e de luto por seus companheiros depois da luta, mas demonstram um lado compassivo ao verem a criança, como se fosse a esperança renascida e criando uma atmosfera familiar em torno da gangue. As personagens representam a questão de seus valores morais, que se deterioraram completamente com toda matança e roubo mas ainda assim eles expressam culpa ou dúvida e compaixão. O próprio autor confessa não gostar desse conto por ele estar "cheio de erros", mas mesmo assim ainda foi um dos meus favoritos, fazendo eu me emocionar e me envolver em sua trama enquanto lia. Como de costume, é mais um conto que merece uma análise individual extensa.
Inferno é outro de seus contos mais famosos. Traz narração com descrições muito bem feitas e realistas, logo no começo o narrador já introduz e descreve a pintura, mas só no final o leitor entende porque ela é tão chocante realmente. Além disso, a temática da arte é uma questão que o próprio Akutagawa discutia com frequência, como em uma série de cartas trocadas com Junichiro Tanizaki (Literário, Literário Demais) e em outro conto que não está presente nessa edição (Devoção à Literatura Popular), representando a arte estar acima do bem ou do mal com Yoshihide deixando de lado qualquer emoção para pintar as coisas com maior realismo possível. O macaco de estimação possuir o mesmo nome do pai é como se ele fosse a representação do pai tentando proteger a filha dentro da corte, deixando sua morte ainda mais impactante, como se representasse a alma de Yoshihide morrendo ao lado da filha. O pesadelo de Yoshihide, em que ele imagina a filha falando "venha se encontrar com sua filha no inferno" antes de sua morte traz mais o elemento de foreshadowing, talvez representando o pressentimento que Yoshihide possuía de que sua filha não estava segura na corte.
Dragão possui um estilo narrativo bem diferente dos outros contos, representando a linguagem oral e a passagem da cultura popular. Além de apresentar o dragão oriental (que é diferente da imagem ocidental), tbm discute essa crença de massa que causa todo mundo a entrar em uma histeria coletiva, até mesmo o homem q inventou a história começa a acreditar que pode ser real simplesmente por estar cercado de pessoas que acreditam nela. Akutagawa deixa as coisas ambíguas no final para o leitor imaginar se realmente apareceu um dragão ou se foi só a imaginação do monge, ou até então no caso de ter aparecido se ele conseguiu acertar a data ou se foi esse desejo de ver o dragão que o criou. No começo o leitor pensa em Naigu de O Nariz, o que deixa ainda mais prazeroso o final fazer referencia à ele, conectando as obras.
Laranjas é um conto curto e simples, com um caráter autobiográfico, mas que me emocionou e se tornou um dos meus favotiros. Todo simbolismo envolvendo viagem e trens e túneis e laranjas, a dicotomia dos dois personagens q não se parecem em nada e que só sentem antipatia um pelo outro no começo, mas no fim existe uma certa empatia entre eles e o narrador sentindo que ainda existe felicidade e esperança mesmo nesse mundo que ele acha tão entediante, a menina entrando numa viagem que vai mudar a vida dela pra sempre e vendo a família pela última vez... considerando o contexto da época de vida do Akutagawa que é o ano em que ele deixa o emprego e o pai morre então ele também está passando por uma mudança na vida e entrando em um período incerto igual a menina, mas existe uma esperança do que pode surgir. Tantas frases são bem feitas, o cenário e as descrições são MARAVILHOSAS eu conseguia imaginar tudo como uma curta animação.
A mágica é um conto bem curtinho e mais simples em relação aos outros, com um público alvo mais jovem. Ele traz a questão moral da ganância e possui o elemento do fantástico das magias e um plot twist no final que deixa a leitura leve. Ele é outro dos menos deprimentes, contando com um certo bom humor.
No Matagal é outro dos mais famosos, tendo sido adaptado em filme live action (Rashomon, 1950), possui os aspectos de um mistério de assassinato com um foco na construção das personagens. Cada personagem é uma pessoa própria e com características de personalidade que o leitor consegue diferenciar pelos relatos e deve levar em conta ao analisar o que é verdade ou mentira. Cada detalhe que pode se contradizer só adiciona mais dúvidas do que realmente aconteceu, dos maiores como "quem matou?" até aos menores como "quem estava usando tal cor" e deixam ainda mais interessante de tentar desvendar o mistério (mesmo que não tenha como ter uma resposta definitiva). Até a vítima dá seu testeminho mas não tem como confiar 100% nele, até porque ele era uma pessoa diretamente envolvida que ia deixar as emoções e visões pessoais afetarem a sua versão dos fatos e não conclui todos os misterios em relação aos envolvidos. Esse é um conto que a cada lida você repara em algum detalhe diferente que talvez não tivesse reparado antes, merecendo sua fama.
Para concluir essa coletânea fantástica, Rodas Dentadas é um conto autobiográfico e o último escrito por Akutagawa antes de seu suicídio, tornando os sentimentos transmitidos através das páginas ainda mais impactantes. É maravilhoso e ao mesmo tempo perturbador, a escrita te comove e fica na sua mente por dias. Os acontecimentos sobrenaturais, as alucinações, as coincidências e superstições, o jeito que o Akutagawa parece tão derrotado e sem energia nem pra tentar ativamente se matar produz um sentimento de inquietação durante toda leitura, um pressentimento que algo ruim esta prestes a acontecer (talvez a própria paranoia do autorr transmitida ao leitor ou o fato da gente saber o que acontece com ele depois). Toda vez que ele mencionava alguma coisa q seria recorrente (como a capa de chuva ou a cor verde) só ia aumentando essa sensação. O simbolismo em torno da morte presente durante a história toda vai ficando na mente e criando esse temor em relação ao final, como se, assim como o próprio Akutagawa, você também estivesse apenas antecipando que ele não sobrevivesse. Ele faz muitas referências literárias interessantes e associa elas muito bem ao que ele estava sentindo, fazendo com que o leitor se interesse em ler as obras mencionadas para conhecer suas influências. As descrições como sempre são feitas maravilhosamente e conseguem criar uma atmosfera que reflete o estado de espírito do autor e que facilita imaginar o cenário. E AQUELE FINAL. Não tem como superá-lo, mesmo lendo e relendo a última página o sentimento inicial permanece. É indescritível. Essa é uma história que fica na cabeça mesmo dias depois de ter lido, tem muitos assuntos que ele traz em questão e vários pontos e sensações memoráveis. Verdadeiramente muda a vida do leitor.
Em suma, poderia falar por horas sobre a escrita magnífica de Akutagawa e esses contos escolhidos. Definitivamente recomendo muito, as sensações passadas através das palavras de Akutagawa, mesmo que escritas há quase 100 anos, seguem tocando nosso coração e mente, nos inspirando e causando reflexões. Um conteúdo com muita qualidade e que acrescenta cultura.