Marcorigobelli 22/05/2011
Ao Coração da Tempestade
erry Siegel e Joe Shuster criaram um mito, Stan Lee deu luz a um universo. Will Eisner nos deixou um legado.
Eisner (1917-2005) dispensa apresentações, considerado por muitos (inclusive este que vos fala) como o maior quadrinista que já viveu, ele praticamente viu as histórias em quadrinhos nascerem nos Estados Unidos, para não dizer que participou de sua concepção. E é em Ao Coração da Tempestade que o próprio autor nos conta parte dessa jornada.
Publicada originalmente no começo dos anos 1990, a história em quadrinhos chegou pouco depois ao Brasil em duas partes por intermédio da editora Abril, então grande potência do país em quadrinhos. Desde então, não tivemos nenhuma reedição em anos, até que a Quadrinhos na Cia., selo de quadrinhos da Companhia das Letras, presenteou a todos nós neste último mês de novembro a obra com a nova tradução e edição completa com ótimo tratamento. Confira a opinião do Puro Pop sobre uma das graphic novels mais importantes na carreira de William Erwin Eisner.
Ao Coração da Tempestade (To the Heart of the Storm, no original) é uma obra autobiográfica onde acompanhamos a história do jovem Willie desde o encontro e juventude de seus pais até o momento em que é convocado para integrar o exército americano na Segunda Guerra Mundial; nesta HQ ele traça um retrato do preconceito e das dificuldades que os judeus sofriam mesmo nos EUA, então Terra da Liberdade. Aqui sabemos da infância sofrida que sua mãe teve, a vida profissional conturbada do pai, os problemas com intolerância que ele sofria das outras crianças e a interrupção abrupta que a guerra impõe em sua carreira como quadrinista.
O álbum começa com Willie em um trem a caminho do campo de treinamento militar durante o princípio do envolvimento americano na Segunda Guerra. Logo de princípio vemos o domínio do autor ao apresentar seu protagonista sem que ele sequer se manifeste com mais que algumas palavras; o diálogo é conduzido por outros dois homens que, não intencionalmente, traçam o perfil do personagem e nos apresentam o plot da história – preconceito – que não é esquecido em momento nenhum desde então. E, diferente do que isto nos faz pensar, não torna a obra em momento nenhum repetitiva ou cansativa, muito pelo contrário.
Não notamos de começo, mas Eisner fez questão de nos apresentar o preconceito de maneira gradual. Não por medo de chocar o leitor, mas para dar a aqueles não tão familiarizados à essa boçalidade uma compreensão mais profunda. Então vemos algo próximo de uma discussão filosófica e a agressão física e psicológica típica das crianças em suas relações umas com as outras, ambas situações de fácil digestão e intencionalmente didáticas, apesar de não tratarem o leitor como idiota. Coisa que poucos além dele são capazes de fazer.
Então o enredo toma o caminho de um grande flashback onde acompanhamos a infância, adolescência e começo tanto da idade adulta quanto da carreira como quadrinista do autor. Entre esses momentos, voltamos para a conversa dentro do trem que é usada agora como um escape, um espaço para que possamos digerir tudo que nos foi apresentado e refletir sobre a história até agora e, como o leitor poderá notar sem dificuldade, o protagonista torna-se quase um efeito de decoração nessas páginas – apesar de eventualmente sermos lembrados de que ele é o centro das atenções.
Somos apresentados também as histórias de vida dos pais de Willie, mostrando os efeitos do antissemitismo nos EUA e na Europa do começo do século XX e a vida difícil que tanto imigrantes quanto nativos daquela terra tinham. Aqui temos uma constante demonstração da genialidade do quadrinista, ele domina fundamentos básicos que nos imergem em cada uma de suas páginas. Sabe dosar com perfeição cenas de drama e humor além de dar a elas o clima e ambientação certa com naturalidade, sem fazer parecer forçado ou fora de lugar.
Lendo Ao Coração da Tempestade constata-se que Will Eisner estava em seu auge como artista, quase não se nota erros ou momentos em que ele perdeu a mão no roteiro e mesmo essas partes, não são de se jogar fora. Creio que, de tudo, minha única reclamação fique na história de quando o pai do autor vivia em Viena, apesar de saber que ela é interessante para a construção do caráter do personagem ela parecia estar ali para encher lingüiça, aumentar o volume do livro. Tanto que ela é um dos trechos mais carregados de humor, quase não parecendo existir na mesma ambientação do resto do álbum.
Os diálogos são dignos da construção do caráter de qualquer um, e a relação entre os personagens é muito bem conduzida, o que é bastante complicado dada a quase obcena quantidade deles que aparecem na história. Mais outra especialidade do quadrinista.
O traço de Eisner é simples e cativante. Seu domínio do preto e branco é imenso e fundamental para a climatização de suas histórias. Notável como ele praticamente ignora os semitons a fim de diminuir a seriedade na arte já que o roteiro é suficiente para carregá-la e seu estilo quase caricato é expressivo e bem sucedido em conseguir a empatia do leitor.
Mas a cereja do bolo está no domínio que ele tem sobre a narrativa, tanto a ponto de não precisar definir os quadros com linhas e sim com a arte. Diferente do que normalmente acontece quando se tenta algo assim, a leitura não fica confusa ou cansativa. Ele usa os próprios desenhos e balões para conduzir o ritmo de forma natural, você inconscientemente sabe para onde seguir e qual balão ler. Pode parecer estúpido, mas esse é um erro de fundamento bastante cometido por profissionais.
Outra característica fundamental do autor é sua capacidade em não deixar a arte se impor ao roteiro e vice-versa. Tudo acontece em total sinergia, você consome e digere ambos sem precisar gastar algum tempo a mais em um ou outro (não que não vá acabar fazendo isso eventualmente), absorvendo a história em uma lida só.
Muitos kudos para a Quadrinhos na Cia. por essa nova edição de Ao Coração da Tempestade. Preferiram não arriscar e se apegaram ao (alto) padrão de suas publicações anteriores. Capa gostosa de pegar e mole o suficiente para não atrapalhar na leitura, mas que também não fica facilmente amassada em decorrência dela.
As páginas são tão prazerosas quanto e em ótima qualidade. Tanto que algumas vezes você vai sentir vontade de folhear o livro apenas para isso; folhear. A impressão está impecável, nenhuma falha no exemplar que recebemos – apesar da impressão anterior ter de fato saído com defeito da gráfica.
Não gostei da tipologia no título, mas isso é uma chatice minha, já que é a mesma usada na capa americana. Porém, as cores feitas sobre uma das cenas da HQ deram a ela toda uma dramaticidade fantástica.
Pontos também para a minibiografia de Eisner ao final do livro (sim, sou chato a esse ponto, me chupem).
A tradução ficou bem superior à desleixada publicada pela Abril há 17 anos, inclusive fazendo questão de não traduzir algumas expressões pelo simples fato de perderem todo o sentido no português.
De forma geral, não há absolutamente nada para reclamar nessa reedição brasileira de Ao Coração da Tempestade. Tudo foi bem trabalhado e fez jus à obra fantástica do mestre Eisner. Ganha nota máxima porque não há outra possível.