Bruno Oliveira 19/12/2013Duas questões a propósito do livro de Dee BrownConcluí recentemente o soberbo Enterrem meu coração na curva do rio, livro de Dee Brown que narra de um modo épico e trágico os incontáveis massacres indígenas na conquista do oeste estadunidense. Trata-se de uma obra notável que durante os últimos meses preencheu meus intervalos entre leituras obrigatórias. Sinto que compensou cada página. Minha empolgação com o assunto, no entanto, não me fará escrever uma resenha do livro, uma vez que não sou historiador e não me considero competente para avaliar criticamente os posicionamentos historiográficos do autor. Seria bobagem escrever a propósito de um livro sobre o qual não sou capaz de dizer nada relevante, além disso, já existem várias resenhas ruins a respeito de boas obras por aí: um texto meu não teria qualquer nulidade nova para acrescentar.
Apesar disso, como foi bastante instigante atravessar as páginas dessa obra e ponderar a respeito daquilo que li, em vez de produzir uma resenha detalhada, gostaria de realizar duas ponderações que julgo pertinentes para historiadores e filósofos a fim percorrer, por meio delas, alguns dos problemas levantados pelo livro. Vejamos no que isso vai dar.
I
“Este não é um livro alegre, mas a história tem um jeito de se introduzir no presente, e talvez os que o lerem tenham uma compreensão mais clara do que é o índio americano, sabendo o que ele foi. Poderão surpreender-se ao ouvir que palavras gentis e ponderadas saem da boca de índios estereotipados no mito americano como selvagens impiedosos. Poderão aprender algo sobre sua própria relação com a terra, com um povo que era de conservacionistas verdadeiros. Os índios sabiam que a vida equivale à terra e seus recursos, que a América era um paraíso, e não podiam compreender por que os invasores do Leste estavam decididos a destruir tudo que era índio e a própria América.
E se os leitores deste livro alguma vez puderem ver a pobreza, a desesperança e a miséria de um reserva índia moderna, acharão possível compreender realmente as razões disso”1.
Basta visitarmos qualquer biblioteca para notar que livros acerca da Ditadura Militar brasileira continuam sendo largamente produzidos e consumidos. Pessoalmente, acho compreensível que seja assim, pois tal tragédia faz parte de nosso imaginário cultural e muitos de nós tem posições firmadas a respeito dela ou se interessam pelo assunto. É comum ouvirmos histórias a respeito daqueles que sobreviveram às barbáries do período e mesmo quem não o vivenciou pode ser comovido por aquilo que há de trágico nele. Parece existir algo de visceral que possibilita isso: quando lemos sobre a Ditadura ou mesmo sobre a Segunda Guerra sentimos que tais incidentes estão além da “mera” tragédia, que constituem mais que simples incidentes ocorridos em certos períodos e circunstâncias. Sentimos que cada um desses eventos expressa um problema humano que ultrapassa as condições que o engendram, necessitando ser pensado como uma espécie de sombra no coração da humanidade que pode, a qualquer momento, apossar-se dele colocar todos nós nas trevas absolutas.
Depois de ler sobre a matança impune e indiscriminada dos índios americanos pelas mãos dos brancos, percebo que pouco sabemos a respeito de eventos como esse e, mais que isso, que é preciso certo esforço para reconhecer o problema humano que existiu ali, pois ele não é óbvio por si só. Parece que algumas tragédias não ganham qualquer sentido para o futuro e são problemas somente para aqueles que sofreram com elas, ficando em nossa memória somente como uma lembrança triste e fugaz. Nada mais. Creio que isso não ocorreu no caso da Segunda Guerra e da Ditadura, uma vez que ambos constituem tragédias que envolvem a morte de pessoas reconhecidas em sua humanidade e estimadas como semelhantes a nós. Ao sabermos do sofrimento de um judeu ou de uma injustiça sofrida por alguém nos anos de chumbo, somos tocados por esses eventos como se eles tivessem ocorrido conosco ou com nossos pares. Todavia, acredito ter ocorrido nitidamente no caso dos índios: não os incluímos na humanidade em que nos reconhecemos e com a qual somos capazes de nos comover, sendo que os problemas dos índios não são problemas humanos, mas somente problemas de índios. Quando algum mal lhes ocorre, somos capazes de lamentar a tragédia que ocorreu com eles, mas incapazes de nos ver dentro dela e participar do problema e do questionamento a seu respeito.
Com isso, desejo compartilhar a primeira dúvida que Enterrem meu coração na curva do rio me fez ter: por que atribuímos a certas tragédias um sentido humano profundo que negamos a outras? Haveria, por exemplo, um motivo político em retomarmos com tanta avidez as discussões sobre a Ditadura atualmente, como reforçar certo discurso de esquerda e criticar grupos ideologicamente comprometidos com os militares ainda hoje? Inclusive, por meio de que elementos retomamos a segunda guerra para considerá-la como paradigmática nas discussões da atualidade e o que isso diz a respeito de nós mesmos?
O livro de Dee Brown me faz pensar que retomar a memória dos erros da humanidade e ponderar acerca delas pode ser mais que mero exercício intelectual saudável, também um modo de nos comover pelo passado para fazer com que acatemos uma ideologia presente que, na aparência, coloca o problema humano, mas, na verdade, apenas se vale dele para promover um discurso de certo tempo e circunstância: o nosso tempo e a nossa circunstância. A exemplo disso, o que desejo sugerir é que talvez as pessoas que mais falem sobre a Ditadura, que mais tenham paixão em seus discursos sobre o assunto, sejam justamente aquelas que, ao usar da memória dela para legitimar um discurso político atual, transformam-na num problema temporal ocorrido em certo período e ocasião, diminuam-na e portanto deixem de perceber o aspecto humano existente nela que teria um significado profundo mesmo que nenhum uso político desse evento pudesse ser feito. Se a Ditadura Militar brasileira ainda tem algum significado, provavelmente não é porque o que ocorreu nela pode ser usado em favor de algum discurso presente, mas porque mesmo que esse uso fosse impossível, tal tragédia pode se comunicar com qualquer tempo e circunstância. Nesse sentido, e talvez somente nesse sentido, é que a memória da ditadura possa ter algum valor.
II
“Vi uma squaw (mulher indígena) no banco, com a perna quebrada por um obus; um soldado foi até ela com o sabre desembainhado; ela levantou um braço para se proteger, quando ele golpeou, quebrando-lhe o braço; ela rolou e levantou o outro braço, que ele golpeou e quebrou; depois, deixou-a, sem matá-la. Parecia haver uma matança indiscriminada de homens, mulheres e crianças. Havia cerca de trinta ou quarenta squaws reunidas numa caverna como abrigo. Enviaram uma menina de cerca de seis anos com uma bandeira branca num pau; mal dera uns passos, ela foi atingida e morta. Todas as squaws da caverna foram mortas mais tarde, além de quatro ou cinco homens fora dela. As squaws não ofereceram resistência. Todo mundo que vi morto estava escalpado. Vi uma squaw com seu filho ainda não nascido, segundo me pareceu, ao seu lado. O capitão Soule me disse depois que havia sido isso mesmo. Vi o corpo de Antílope Branco com os genitais cortados e ouvi um soldado dizer que iria fazer uma bolsa de fumo com eles. Vi uma squaw com os genitais cortados… Vi uma menina de uns cinco anos que se escondera na areia; dois soldados descobriram-na, tiraram seus revólveres e a mataram, arrastando-a depois pelo braço sobre a areia. Vi várias crianças de colo mortas com suas mães”2.
Dentro da Filosofia é considerado um elogio ser um helenista, um estudioso da cultura e das obras gregas. Dá status, digamos assim. Por conta disso é bastante comum que pessoas da área teçam elogios a certos autores nesses termos: “Niezsche era um grande leitor dos gregos”, “Heidegger foi um grande helenista” e coisas dessa sorte são bastante repetidas dentre os filósofos. Tais afirmações consistem em mais que um simples elogio de suas filosofias, que estariam a dialogar com algo tão elevado como a cultura grega, e são também um elogio à pessoa de cada um desses filósofos, que teria sido capaz de realizar tal proeza.
De fato, os helenos foram extraordinários e sustentam a base da civilização – ninguém entre nós objetará contra isso, todavia, nada nos impede de lamentar que tenha sido assim.
Nos dias de hoje, nosso imaginário, vocabulário e maneiras de pensar se encontram tão profundamente imersos na cultura grega que ninguém espera encontrar uma alternativa a ela. Caso descubramos uma tribo nova, de bom grado levaremos a ela o vício, o dólar e São Tomás: alguém precisa queimar suas raízes pagãs, orientar suas almas e lhes apresentar a verdadeira filosofia.
Através da história percebemos que mesmo os povos que jamais ouviram falar nos gregos, que nunca puderam compreender as palavras difíceis e vazias que foram anotadas em seus livros – e eram, portanto, “bárbaros” e “maus helenistas” – não puderam escapar do poder dos filhos bastardos dos helenos, daqueles que fizeram avançar sobre tais povos a marcha da civilização usando ideias e ideais helênicos para predominar sobre eles. Hoje a sombra da Grécia cobre quase inteiramente todos os povos, inclusive aqueles que poderiam ter fornecido outra base para a civilização, outro imaginário, vocabulário e formas de pensar. Esses “bárbaros”, agora verdadeiramente barbarizados, sobreviveram somente nas bordas dessa sombra, em livros como o de Dee Brown, pois salgamos sua terra, traficamos suas crianças e destruímos sua cultura. Com o tempo, eles sumirão completamente e viveremos por inteiro na sombra dos gregos, na escuridão absoluta que a civilização fez da cultura deles. Quando esse dia chegar, poderemos nos orgulhar, seremos todos “bons helenistas”.
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