Luis 17/02/2014
O obscuro labirinto da alma russa
Os amantes do futebol sabem bem o que é isso : como escolher entre o pragmatismo de uma seleção campeã, como a de Parreira em 1994, ou a arte dos craques de 82 que, comandados por Telê Santana, ficaram pelo caminho no Estádio Sarriá ? A resposta depende inteiramente do referencial conceitual que cada um tem do fabuloso esporte bretão.
Tal como no exemplo acima, o julgamento de um livro tem relação direta com as ideias de cada leitor sobre literatura.
Assim como nem todo mundo que faz poesia pode ser chamado de poeta, quem escreve um romance não se converte necessariamente em romancista. Boris Pasternak, ganhador do prêmio Nobel em 1958 (obrigado a recusar por pressões políticas), autor de Dr.Jivago, era um poeta.
Talvez, desde o sucesso estrondoso da versão cinematográfica do livro, ganhadora de 5 Oscars, a imensa maioria dos que se interessam pela obra mais famosa de Pasternak vem em busca da história de amor entre Lara e Jivago, eixo central do filme de David Lean. Esse é um dos inúmeros obstáculos de Dr.Jivago, o livro : Lean extrai fragmentos da história para reconstruí-la de forma palatável às grandes plateias. Pasternak, ao contrário, traz a Guerra e a Revolução para o primeiro plano, sendo o relacionamento entre os protagonistas um mero adendo ao longo das quase 700 páginas do volume e, além do mais, está longe de facilitar a vida do leitor. Reversão radical das expectativas.
Na edição que adquiri (Edições Best Bolso, 2013), há no início uma relação de alguns dos personagens, no estilo “quem é quem”. Foi providencial. Pasternark, numa espécie de pegadinha permanente, se refere a eles ora por seus nomes próprios, ora por sobrenomes, às vezes pelos nomes completos e frequentemente por apelidos. Só como exemplos, Jivago, além da denominação título do romance, também é chamado por Iúri Andreevicht, Iura ou Iurotchka. O amigo de Jivago, Kólia, também aparece como Vedeniapin e Nikolai Nikolaievitch. Essa dificuldade por vezes é desanimadora.
Aliado a isso, a vocação poética do autor privilegia a construção de grandes imagens em detrimento de uma elaboração mais clara e lógica da história. A impressão é que Boris nos carrega pela mão, de olhos vendados, até os bosques russos e depois nos abandona. O cenário é lindo, mas a procura desesperada por uma trilha embota a percepção dessa beleza. Essa concepção, embora profundamente pessoal, pode ter ressonância junto a outros leitores : creio que, na literatura, deva existir um equilíbrio entre forma e conteúdo, de maneira que a magia da arte, que acorrenta o espirito às suas páginas, se faça presente. “Dr, Jivago” é todo forma, com o conteúdo se sujeitando à essa lógica.
Á medida que a leitura (arduamente) avança, os fatos e personagens vão se sobrepondo em situações tão caóticas quanto o próprio ambiente russo revolucionário. Talvez sejam necessárias pacientes releituras, e algum conhecimento factual do período, para perceber efetivamente a complexa inter relação dos fatos proposta por Pasternak.
Mais sorte terão os leitores que, ao abdicarem do pleno entendimento da trama, concentrarem-se no desfrute vagaroso dos grandes painéis pintados pelo autor , encarando o livro como uma crônica poética dos anos mais turbulentos da história russa.
Conforme já escrito acima, Boris Pasternark, antes de qualquer coisa, foi poeta, já consagrado quando da publicação de “Dr.Jivago”. Ao escrevê-lo, embora tenha contrariado o que eu, como leitor, percebo enquanto elementos da boa ficção, foi extremamente fiel à sua vocação maior. Que o diga o júri do Prêmio Nobel.
A propósito, eu prefiro a seleção de 1982. No futebol, pelo menos, sou mais poético.