SilDT 29/03/2013
Cultura versus Natureza?
Como Lévi-Strauss, Laraia reafirma a existência de diversidade de modos de comportamento entre diferentes povos, citando os mais variados exemplos, dentre eles as preferências de alimentação, as proibições de uso de objetos, alguns costumes (formas de se realizar o parto de mulheres grávidas) e regras que são estabelecidas de acordo com gênero sexual ou idade (como o ato de votar que só é permitido a indivíduos acima de 16 anos). Até mesmo o riso é colocado em xeque, como atribuído de diferentes sentidos para cada sociedade. E acho que além disso, seu texto explora questões salientes que não estão expressas em Lévi-Strauss. Na parte II, “Como Opera a Cultura”, é revelado como a cultura interfere no plano biológico (fé ou crenças levando sujeitos a adoecerem e até morrerem, como é o caso do Banzo, o suícidio ou morte por coletividade). Também é dito que todos os indivíduos participam diferentemente de sua cultura, que nenhuma pessoa é capaz de participar de todos os elementos de sua cultura mas que para operar dentro do sistema, é necessário ter um conhecimento mínimo dela. Outra assertiva é a de que a cultura tem uma lógica própria, ou seja, que qualquer hábito cultural será coerente somente se analisado a partir do sistema a que pertence. Aqui aparecem os exemplos de porquê para algumas tribos indígenas os filhos só são considerados filhos do pai ou da mãe. Finalizando, faz-se menção à cultura ser dinâmica, analisando alguns processos de modificação constante nas culturas, como por exemplo, alteração dos padrões de beleza dentro de uma mesma cultura (troca de vestimentas em curto prazo de tempo).
Enfim, avalio as reflexões deste livro de Laraia como excelentes, que exceto pela crítica a seguir, teriam todo mérito e crédito. Fazendo-se uma leitura desapressada, daquelas em que não se aceita de imediato o que está sendo dito para poder não ser ‘contagiado’ pelo que está implícito, e para posteriormente poder fazer a reflexão a partir também de outros parâmetros, é possível encerrar a leitura com alguns questionamentos.
É perceptível que inicialmente Laraia narra a história de constituição do conceito de cultura, explicando-o por algumas idéias precursoras de Edward Tylor e de Kroeber. Discorre-se sobre como o conceito de cultura foi formado, como sua idéia se construiu em contraposição ao biológico, à natureza. A tese central da bibliografia é apontar que não há um determinismo biológico que influencia as ações humanas, que há sim um determinismo geográfico (as diferenças do ambiente físico condicionam a diversidade cultural, determinam os comportamentos), é enfatizar o caráter de que a cultura é aprendida, para opor e fazer frente à idéia dos comportamentos adquiridos de modo inato ou por transmissão biológica.
Como psicóloga, concordo que o homem é, em grande parte, o resultado do meio cultural em que foi socializado. Com isto quer se corroborar a afirmativa de que é inegável que o homem age de acordo com sua cultura, de acordo com o que aprendeu em sua história de vida particular, inserido num grupo. E entendo que essa contraposição da cultura à natureza na época foi necessária para não deixar que um biologicismo imperasse. Contudo e todavida, se Kroeber queria evitar a confusão entre orgânico e cultural, será que ao distanciar o homem do animal, ao invés de relativizar aquilo que determina o comportamento, ele não acaba exacerbando o lado cultural do homem em detrimento do lado biológico? Porque para a cultura ser ressaltada como importante é preciso, como foi dito, achar que os instintos foram suprimidos?
Essas perguntas me ocorrem porque atualmente está em voga, de certa maneira, um discurso pró ao retorno da ligação do homem com a natureza. Ou melhor, há também a interpretação de que nem houve esse grande afastamento suposto, fruto de uma ilusão. Adicionarei aqui uma outra perspectiva de relação da constituição do homem com a natureza, a qual visualiza não que o homem ‘libertou-se’ da natureza (como se estivesse antes escravo desta) e sim que ainda está totalmente integrado com esta. Os que acreditam que o homem transformou toda a Terra em seu habitat baseiam-se no raciocínio de um homem de fora, que se apodera de algo que lhe é inimigo, a natureza, para dominá-la. Mas esta não é a única forma de pensamento.
Já houve uma ruptura do biologicismo e do antropologismo após os anos de 1950. Até essa época, o homem era majoritariamente definido como o oposto do animal, e a cultura também era concebida como oposta à natureza. A ciência biológica considerava a vida como uma qualidade original própria dos organismos, e mantinha-se fechada perante os fenômenos sociais, perante a realidade físico-quimica, perante a cultura e a comunicação humana. Homem e cultura, vida e natureza, matérias físico-quimicas eram estratos sobrepostos e não comunicantes. Entretanto “é evidente que o homem não é constituído por duas camadas sobrepostas, uma natural e uma psicossocial... É evidente que cada homem é uma totalidade biopsicossociológica”.
De acordo com o sociólogo Edgar Morin, os seres humanos possuem duas naturezas co-relacionadas. A primeira é a natureza biológica, pois antes de ser cultural, todo ser humano é um organismo vivo, físico, químico e biológico. Porque ele adveio da Terra, tendo retirado todos seus átomos do universo. Em segundo lugar, pois foi com a evolução histórica que isso se deu, o homem passou a ter uma segunda natureza, a natureza cultural, que está imbricada na primeira. Este autor explica que os sujeitos humanos são naturalmente culturais e culturalmente naturais. Como assim? Existe uma tendência natural para o desenvolvimento da cultura e existe uma aptidão cultural para desenvolver a natureza humana. O homem está disposto a ser cultural e a cultura está disposta a desenvolver o homem. “O homem é um ser cultural por natureza, por ser um ser natural por cultura”. Ou seja, a natureza humana, a suposta normalidade esperada do homem, é que ele seja um ser cultural, porque a cultura dispõe essa natureza a ele e ele a aceita inevitavelmente, corroborando a existência do vínculo cultura-natureza. Então a cultura só pode existir juntamente com e depois dos traços biológicos do homem.
Existe uma evolução natural e uma evolução cultural, relacionadas dialeticamente. A primeira desenvolve a cultura, e a segunda empurra o homem a desenvolver seu cérebro, a transformar-se cada vez mais em homem, mantendo assim o vínculo da cultura com a natureza.
Portanto, é possível articular o lado biológico e antropológico do ser. Ademais, o homem teve diversos nascimentos, ou seja, não criou-se de imediato, e ele não pode ser conhecido diretamente, de apenas algumas maneiras, ou separadamente, apenas pela maneira biológica, ou pela maneira histórica, pela maneira social cultural e antropológica, como habitualmente se faz. Morin propõe uma leitura do humano que religa todos estes fatores e demonstra que há uma identidade terrena do homem com o planeta físico que ele habita, e com o qual ele faz um pacto de existência – um não existe sem a existência viva do outro. É da biologia que o homem retira sua condição de vertebrado, supermamífero, superprimata. Muitos dos comportamentos ainda são explicados porque ele faz parte destas categorias primeiramente naturais ou biológicas.
E com essa afirmação, de que o ser humano passa a ser um ser ‘cultural por natureza e natural por cultura’, relembra-se que ele precisa e continua sendo ainda um animal (organismo biológico, animado por uma vida, com características impulsivo-biológicas, agressivas e pulsionais). Nossa identidade animal foi mascarada pela civilização ocidental, esta a qual muitas vezes esquece de considerá-la: pensa que as loucuras, as irracionalidades, os crimes e principalmente os mais descomedidos como genocídios, parrícidios e filicídios são inumanos, atos não pertencentes à natureza do homem. Mas esta mesma civilização está deixando de acreditar que é senhora e dona da Terra, manipuladora e conquistadora do cosmo, totalmente afastadas de suas condições física, animal e biológica, para assumir seu laço indissociável com a biosfera, sem a qual não pode viver.
Finalizando, em tudo que é humano, existem diversos componentes: subjetivos, culturais, biológicos, etc. Um beijo, para exemplo simples e emblemático, engloba um desejo individual de uma pessoa, uma necessidade biológica do corpo (desenvolvida com os animais mamíferos, ao sugar e sentir conforto no encostar de seus lábios ao corpo dos progenitores) e uma prática culturalmente mantida e ensinada.