João Moreno 31/03/2019E todos querem saber o que faz o brasil, Brasil...
"(...) O Brasil não é um país dual onde se opera somente com uma lógica do dentro ou fora; do certo ou errado; do homem ou mulher; do casado ou separado; de Deus ou Diabo; do preto ou branco. Ao contrário, no caso de nossa sociedade, a dificuldade parece ser justamente a de aplicar esse dualismo de caráter exclusivo, ou seja, uma oposição que determina a inclusão de um termo e a automática exclusão do outro" (p. 41).
Roberto DaMatta foi professor do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ali, trabalhou de 1959 a 1986, de início como estagiário, saindo um "naturalista". Foi lá que, em suas próprias palavras, se tornou antropólogo e professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social e Chefe do Departamento de Antropologia. Hoje escreve em jornais, além de ter publicado artigos e livros. Entre estes, a obra O que faz o brasil, Brasil?, de 1984, texto, objeto deste resumo, que, nas palavras do autor, se configura como uma "resposta tímida, imprecisa e certamente discutível". Modéstia do autor à parte, o que fica após a leitura é uma nova forma de se pensar os diferentes Brasis.
Em seu livro, DaMatta propõe uma 'ousada' premissa: analisar as estruturas sociais e antropológicas da sociedade brasileira a partir de estruturas que nos são caras, conhecidas, mas, agora, a partir de sua obra, apresentadas de maneira singular. O que isso quer dizer, afinal? Significa que o cientista social analisa o Brasil como duas faces de uma mesma moeda. Nesta análise, busca também compreender o elo que une tais conceitos. A gradação, o meio termo. "Afinal de contas, como se ligam as duas faces de uma mesma moeda? O que faz o brasil, Brasil" (p. 20).
Ainda sobre as particularidades de entender a sociedade brasileira, em outras palavras, estas [particularidades] não podem ser observadas à partir de metodologias e parâmetros europeus. A procura de respostas através de conceitos dicotômicos, polarizados, excludentes quando da inclusão do outro, comuns a outras nações, por exemplo, não nos revelaria aquilo que faz o brasil, Brasil?, uma vez que somos donos de uma organização social e de uma formação histórica particulares. Buscando clareza, para DaMatta, entender o Brasil implicaria em aceitar um meio termo à metáfora da moeda. Assim, para entendermos a dicotomia casa / rua, precisamos levar em conta a variável trabalho. O racismo? O significado do branco, do negro, mas, principalmente, do Mulato. O Carnaval? A ordem, o trabalho, e a subversão das estruturas sociais.
Caso contrário, tendemos, concluindo a partir da obra de DaMatta, a uma análise frágil.
"Nós, brasileiros, somos um povo marcado e dividido pelas ordens tradicionais: o nome de família, o título de doutor, a cor da pele, o bairro onde moramos, o nome do padrinho, as relações pessoais, o ser amigo do Rei, Chefe Político ou Presidente. Tudo isso nos classifica socialmente de modo irremediável. Jamais utilizamos o concurso público e a competição como algo normal entre nós, daí o trabalho que é fazer uma eleição honesta e disputada [fala-se, aqui, do Carnaval, exemplo de festa decidida pelo povo]. Ela implica, inclusive, algo que evitamos: dar opiniões e disputar vontades, revelando abertamente as nossas mais legítimas (e ocultas) diferenciações sociais (...) Carnaval, pois, é inversão porque é competição numa sociedade que tem horror à mobilidade, sobretudo à mobilidade que permite trocar efetivamente de posição social" (DAMATTA, 1984, p. 78).
Ao buscar caracterizar o conceito de identidade, o antropólogo nos diz que a partir de preferências musicais, esportivas, culinárias ou especificidades geográficas seria possível determinar aquilo que definimos por identidade do indivíduo. Esta definição [de identidade], contudo, só se daria a partir de uma construção social, em grupo. "Quem me garante que o que eu disse é convincente para definir um brasileiro foi a própria sociedade brasileira (...) Isso indica claramente que é a sociedade que nos dá a fórmula pela qual traçamos esses perfis e com ela fazemos desenhos mais ou menos exatos" (DAMATTA, 1984, p. 18).
A partir destas premissas, DaMatta nos revela uma das conclusões mais importantes de sua obra: a dupla possibilidade de construção da identidade brasileira e a maneira que essa dicotomia (sempre ela) nos fornece conclusões insuficientes sobre o Brasil, o brasileiro e a sociedade. Esmiuçando a fala do professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é possível 1) analisar o Brasil de forma quantitativa, por meio de índices e números, "(...) classificação [que] permite construir uma identidade social moderna, de acordo com os critérios estabelecidos pelo Ocidente europeu a partir da Revolução Francesa e da Revolução Industrial. Aqui, somos definidos por critérios "objetivos", quantitativos e claros" (DAMATTA, 1984, p. 18). PIB, IDH, Índice de Gini etc etc.
De outro modo, 2) "podemos ver a nós mesmos como algo que vale a pena" (p. 19). Aqui, Roberto DaMatta se refere à música, ao esporte, aos traquejos sociais, uma maneira um tanto quanto informal, mas qualitativa de se ver o país. Para o autor, a dificuldade das análises das estruturas sociais brasileiras residiriam no isolamento destes dois fatores, quantitativos e qualitativos, dos objetos a serem estudados. Ou pensamos no Brasil subdesenvolvido e em seus números que nos envergonham como identidade nacional e nação, ou, descolado destes, pensamos apenas nas relações sociais, nos jeitinhos, no Carnaval, no modo particular brasileiro de se enxergar o trabalho.
"Sustento que, enquanto não formos capazes discernir essas duas faces de uma mesma nação e sociedade, estaremos fadados a um jogo cujo resultado já se sabe de antemão. Pois, como ocorre com as moedas, ou teremos como jogada um "brasil" pequeno e defasado das potências mundiais, Brasil que nos leva a uma autoflagelação desanimadora; ou teremos como jogada o Brasil dos milagres e dos autoritarismos políticos e econômicos, que periodicamente entra numa crise'"(DAMATTA, 1984, p. 20).
No segundo capítulo, o antropólogo destaca a dicotomia da casa e da rua e, entre esses dois, o trabalho. Há uma divisão clara entre estes, alerta-nos. A singularidade da casa, da família, do tratamento que os membros que ali residem ou visitam contrasta com o modo como enxergarmos a rua. Se "vivemos numa sociedade onde casa e rua são mais que meros espaços geográficos. São modos de ler, explicar e falar o mundo" (p. 28-29), a rua seria sinônimo de "luta e sangue"
"Na rua", nos diz Roberto DaMatta, "não há, teoricamente, nem amor, nem consideração, nem respeito, nem amizade" (p. 29). Local perigoso, para o brasileiro, estar 'carregado' do adjetivo "de rua" já seria motivo ou sinônimo para desvalorização, indiferença, menosprezo. Mulheres de rua [prostitutas], meninos de rua, comida de rua. Temos, segundo o antropólogo, um local "em que ninguém nos respeita como "gente" ou "pessoa" (...) Se a mulher é da rua, ela deve ser vista e tratada de um modo (...) Até mesmo objetos e pessoas, como crianças, podem ser diferentemente interpretados caso sejam da rua ou de casa." (p. 30).
Casa e rua seriam, então, dois lados da mesma moeda.
Outro pensamento que chama a atenção neste capítulo - grita, na verdade - é a relação entre trabalho rua e casa, levantada por DaMatta.
Para o autor, a rua seria o sinônimo de batente. A expressão - batente - simbolizaria o obstáculo, aquilo que nos limita e nos impede de algo, definições que podem ser constatadas pela origem da expressão: tripaliare , derivação de tripaliu, do latim, objeto usado em torturas de escravos, na Roma Antiga.
De modo genial, Roberto DaMatta traz o contexto histórico do povoamento e colonização brasileiro para caracterizar a forma como enxergamos o trabalho. Americanos e ingleses - de forte tradição protestante (calvinistas e luteranos) enxergam, no trabalho, "uma ação destinada à salvação". Nós, ao contrário, de tradições católica...
"(...) achamos que o trabalho é um horror. Não é à toa que o nosso panteão de heróis oscila entre uma imagem deificada [endeusada] do malandro (aquele que vive na rua sem trabalhar e ganha o máximo com um mínimo de esforço), o renunciador ou o santo (aquele que abandona o trabalho neste e deste mundo e vai trabalhar para o outro, como fazem os santos e líderes religiosos) e o caxias, que talvez não seja o trabalhador, mas o cumpridor de leis que devem obrigar os outros a trabalhar.... O fato é que não temos a glorificação do trabalhador, nem a ideia de que a rua e o trabalho são locais onde se pode honestamente enriquecer e ganhar dignidade
Mas poderia ser de outro jeito numa sociedade em que até outro dia havia escravos e onde as pessoas decentes não saíam à rua nem podiam trabalhar com as mãos? É claro que não... No nosso sistema, tão fortemente marcado pelo trabalho escravo, as relações entre patrões e empregados ficaram definitivamente confundidas. Não era algo apenas econômico, mas também uma relação moral onde não só um tirava o trabalho do outro, mas era seu representante e dono perante a sociedade como um todo. O patrão, num sistema escravocrata, é mais que um explorador de trabalho, sendo dono e até mesmo responsável moral pelo escravo" (p. 31-32).
Roberto DaMatta começa o terceiro capítulo - o mais interessante, na minha opinião - discutindo uma premissa. Na verdade, uma frase do Padre André João Antonil:
"O Brasil é um inferno para os negros, um purgatório para os brancos e um paraíso para os mulatos" (ANTONIL apud DAMATTA, 1984, p. 37).
Assim, o antropólogo nos alerta para a necessidade de, caso queiramos entender o contexto das relações raciais, no Brasil, nos atentarmos para as implicações morais e políticas que a frase de Antonil carregava. Roberto DaMatta chama a atenção para as Teorias Raciais do final do século XIX e XIX, que caracterizaram o período pós-alforria. De acordo com o pesquisador, as teorias atentavam mais para os "horrores" da miscigenação entre negros, índios e brancos, sem, contudo, relativizar o tratamento desumano e de inferioridade recebido por negros e dos conceitos estabelecidos acerca destes.
O que Roberto da Matta nos diz é: entender esse horror da época à miscigenação é o principal ponto para o entendimento das diferenças entre o racismo norte-americano, europeu e brasileiro, que ainda perduram.
Vale lembrar que nos Estados Unidos e na Europa houve um sólido sistema jurídico que dividia internamente as respectivas sociedades. Ao contrário do Brasil, o racismo, naqueles Estados-Nações, ia além do fenótipo, da cor da pele. Era "visto" e "tratado" como negro todo aquele que possuía ascendência africana, o "sangue negro" Para estes "infelizes", restava à marginalização da sociedade por vias jurídicas, as famosas Leis de Jim Crow.
No Brasil, por sua vez, a velha dicotomia "brancos Vs pretos" não foi suficiente para explicar o racismo à brasileira. Como duas faces da mesma moeda, o elemento que ligaria esses dois conceitos opostos serio o mulato: o ponto de inflexão, o elemento que reprime e assume as características de seus extremos. O mulato é, pois, nas questões raciais, aquele que também conhecerá as consequências sofridas pelo negro; por não ser branco nem negro, se entre o negro há o mulato, o racismo brasileiro se caracterizará por ser de difícil identificação, velado. À margem - não no que diz respeito às sevícias, o mulato será explorado no labor, mas ignorado nas relações sociais. Amálgama, nas palavras dos teóricos raciais, que vai apagando, pouco a pouco, as melhores qualidades dos brasileiros...
"Gobineau, como se vê, foi o pai, ou melhor, o verdadeiro genitor de um dos valores mais caros ao preconceito racial de qualquer sociedade hierarquizada. Refiro-me ao fato de que ele não se colocou contra a hierarquia que governava, conforme supunha, a diversidade humana no que diz respeito aos seus traços biológicos, mas foi terminantemente contrário ao contato social íntimo entre elas. E é precisamente isso, conforme sabe (mas não expressa) todo racista, que implica a ideia de miscigenação, já que ela importa contato (e contato íntimo, posto que sexual) entre pessoas que, na teoria racista, são vistas e classificadas como pertencendo a espécies diferentes. Daí a palavra "mulato", que de vem de mulo, o animal ambíguo e híbrido por excelência; aquele que é incapaz de reproduzir-se enquanto tal, pois é o resultado de um cruzamento entre tipos genéticos altamente diferenciados" (DAMATTA, 1984, p. 39).
"Que qualquer um que duvida dos males dessa mistura de raças, e se inclina, por mal entendida filantropia, a botar abaixo todas as barreiras que as separam, venha ao Brasil. Não poderá negar a deterioração decorrente do amálgama de raças, mais geral aqui do que em qualquer outro país do mundo, e que vai apagando rapidamente as melhores qualidades do branco, do negro e do índio, deixando um tipo indefinido, híbrido, deficiente em energia física e mental" (AGASSIZ apud DAMATTA, 1984, p. 40).
Vale lembrar que, no Brasil, o esquecimento não se destinou às relações de dominação escravista. O racismo, por aqui, nunca questionou as raízes da hierarquia social / racial, por sua vez, perpetuou a exclusão daqueles nascidos de uma mistura brasileira. No Brasil, o mulato seria, então, uma pária. Afinal, como diria o teórico Agassiz, miscigenar seria a "deterioração decorrente do amálgama de raças, mais geral aqui do que em qualquer país do mundo".
Ao retornar à frase do Padre André João Antonil, para o antropólogo Roberto DaMatta, o "mulato não estaria no paraíso". Pelo contrário, estaria, também, no inferno, como uma imoralidade. "Numa sociedade onde não há igualdade entre as pessoas, o preconceito velado é forma muito mais eficiente de discriminar pessoas de cor, desde que elas fiquem no seu lugar e "saibam" qual é ele". (p. 46). Ao lado desses preceitos, temos um constructo social importante, que nos molda, mais do que nunca, como sociedade: o mito da democracia racial.
"(...) é mais fácil assumir que o Brasil foi formado por um triângulo de raças, o que nos conduz ao mito da democracia racial , do que assumir que somos uma sociedade hierarquizada , que opera por meio de gradações e que, por isso mesmo, pode admitir, entre o branco superior e o negro pobre e inferior, uma série de critérios de classificações. Assim, podemos situar as pessoas pela cor da pele ou pelo dinheiro. Pelo poder que detém ou pela feiura de seus rostos. Pelos seus pais e nome de família, ou por sua conta bancária. As possibilidades são ilimitadas, e isso apenas nos diz de um sistema com enorme e até agora inabalável confiança no credo segundo o qual, dentro dele, 'cada um sabe bem o seu lugar'" (p. 47).
A fala de DaMatta se articula muito bem com o que expressa a historiadora, e também antropóloga, favorita deste portal, Lilia Moritz Schwarcz. Talvez bebendo da fonte de Roberto - o livro O que faz o brasil, Brasil? é citado em uma obra da pesquisadora, Lilia é cristalina:
"(....) Em 1933, Gilberto Freire lança Casa Grande e Senzala. Foi um sucesso. Em Casa Grande, o mesmo modelo de democracia racial. O Brasil seria uma espécie de harmonia, teria povos em harmonia convivendo entre si: povos indígenas, povos negros, povos brancos. Foi só em 1950, provocados por Gilberto Freire, que a Unesco criou um programa para mostrar que o Brasil era um exemplo de Democracia Racial. Não deu nada nada certo. Florestan Fernandes, [sociólogo], pesquisando o racismo aqui em São Paulo, demonstrou que o brasileiro tinha um tipo muito particular de racismo. Vamos combinar que não tem racismo bom. "O brasileiro tinha preconceito de ter preconceito". O que ele quis dizer com isso? O brasileiro tinha preconceito, era racista, mas negava o tempo todo. "Você que está [lendo], você que é racista, eu não sou". Isso criou uma noção de mestiçagem muito complicada, no Brasil, na minha opinião. A gente pensa mestiçagem como mistura, mas que tal nós pensarmos a mestiçagem como mistura e separação também?". (SCHWARCZ 2019, s.p). [1]
Ao fim, o antropólogo arrisca algumas conclusões. Em 1984, clamava por igualdade jurídica, formalizada apenas em 1988, com a Constituição Federal, mas ainda carente de materialidade. Ainda usamos, nas palavras de DaMatta, a "nossa mulataria e os nossos mestiços" como forma de esconder uma sociedade hierarquizada e desigual. Um mito - o da democracia racial - que nos imobiliza e nos impede de tomarmos atitudes concretas contra o racismo à brasileira. Assim, citando-o, um racismo silencioso, à espreita, que "torna a injustiça algo tolerável, e a diferença uma questão de tempo e amor" (p. 47). Até quando?
Ao pensarmos no racismo como algo apenas racial, como fizeram as teorias raciais e a explicação de uma suposta democracia, deixamos de lado questões sociais, políticas e econômicas importantes que envolvem este mesmo racismo.
Para entender o Carnaval é preciso, antes disso, entender a dicotomia entre rotinas e ritos, trabalhos e festas, entre o ordinário e o extraordinário. Assim, vivemos sempre entre estes dois momentos. Passageiros, segundo DaMatta, na busca pelo outro ou, então, em busca que o outro permaneça, continue. Temos, assim, de acordo com o antropólogo, a capacidade, através de nossa memória, de guardar aquilo que nos marca como indivíduo e sociedade, sejam estas coisas positivas ou negativas. Fugir das amarras cotidianas seria um dos instrumentos necessários para essa memorização.
Em sociedades capitalistas, a ordem é, via de regra, o único caminho possível e aceitável. A descontinuidade, banida ou evitada. É por isso que doença dos funcionários ou paralisações dos sistemas produtivos não são bem vindos. Greves, mal vistas. O sistema capitalista exige uma lógica de produção contínua e constante para alcançar os seus objetivos. Assim, a rotina e o trabalho - com sua lógica contínua e repetitiva, com o estabelecimento de uma ordem imutável, por assim dizer, tornam o trabalho algo não digno da memória social.
Se aquilo que nos marca positivamente torna-se, também, memorável, a festa - o extraordinário - adquire signos positivos, bem quistos socialmente. O trabalho, ao contrário, assume tons daquilo que é bruto, duro. "Para nós, brasileiros, a festa é sinônimo de alegria, o trabalho é eufemismo de castigo, dureza e suor" (p. 69).
Para Roberto DaMatta, a compreensão do Carnaval e dessa estrutura rígida conhecida por trabalho e ordem só é possível a partir do entendimento da subversão de hierarquias sociais e morais que certos ritos trazem à sociedade. Ao entendermos a integração entre os diferentes atores sociais em sua diversidade estrutural neste contexto sem, teoricamente, leis. Fantasiados, no Carnaval, assumimos diferentes papéis que nos são negados pela ordem continua e estável do cotidiano.
Assim, "por tudo isso, o carnaval é a possibilidade utópico de mudar de lugar, de trocar de posição na estrutura social. De realmente inverter o mundo em direção à alegria, à abundância, à liberdade e, sobretudo, à igualdade de todos perante a sociedade. Pena que tudo isso só sirva para revelar o seu justo e exato oposto..." (p. 78).
Neste capítulo, o antropólogo afirma que todo o rito ou festa nos rememora algum momento, "recriam e resgatam o tempo, o espaço e as relações sociais" (p. 81). A partir dessa afirmação, distingue, entre os diferentes rituais, aqueles que estabelecem a desordem (o Carnaval e a sua subversão, por exemplo) ou os ritos que buscam a ordem, a estabilidade. É sobre este último tipo que DaMatta vai gastar as suas linhas neste capítulo.
Assim, as festas-ritos seriam, resumidamente, momentos de legitimação de ordem social. A confirmação de uma estabilidade, dos papeis sociais, através dos vestimentas, atos, separações hierárquicas. Do Estado à Igreja. "É, justamente, esse resgate da ordem que tais rituais pretendem realizar por meio dessas dramatizações. Daí, certamente, a associação entre cerimonial e poder. É que o ritual reveste o poder, dando-lhe uma forma exterior solene e legítima" (p. 86-87).
"Num livro que escrevi - Carnavais, malandros e heróis -, lancei a tese de que o dilema brasileiro residia numa trágica oscilação entre (1) um esqueleto nacional feito de leis universais cujo sujeito era o indivíduo e (2) situações onde cada qual se salvava e se despachava como podia, utilizando para isso o seu sistema de relações pessoais. Haveria, assim, nessa colocação, um verdadeiro combate entre leis que devem valer para todos e relações que evidentemente só podem funcionar para quem as tem" (p. 96-97).
Para discutir a nossa brasilidade, aquela que salta aos olhos, o professor Roberto DaMatta estabelece dois lados de uma mesma moeda, forma encontrada para dialogar com essa questão: o brasileiro enquanto indivíduo, cidadão, sujeito às normas sociais e leis, e a pessoa enquanto ser social, que busca, assim, a vantagem. O Jeitinho estaria entre os dois, o malandro, assim como o estereótipo do "sabe com quem você está falando?"
Assim, o Jeitinho, a Malandragem, o "você sabe com quem você está falando" envolvem, via de regra, um fato impessoal, externo, e a pessoalidade das relações pessoais e sociais.
O que DaMatta nos diz é que o jeitinho brasileiro residiria entre o cidadão e o desonesto. Em um ambiente jurídico caótico, descolado da realidade, buscamos alternativas para leis que, às vezes, são proibitivas em excesso, fazemos uma aplicação pessoal. Na mesma medida, burlamos normas sociais mais básicas pois há, quase sempre, a busca por vantagens pessoais em um ambiente coletivo.
Por fim, DaMatta conclui que o jeitinho brasileiro e as diferentes gradações dele nada mais seriam que "uma ação concreta" - entre o legal e o desonesto em busca de ascensão. Em um país de leis absurdas, descoladas da realidade, usamos o jeitinho, também, tentando burlar até "normas sociais mais gerais".
Ao finalizar o ensaio, Roberto DaMatta rememora os percalços que passou para 'construir' um perfil do país. Ao tentar responder O que faz o brasil, Brasil?, o antropólogo buscou uma visão não determinista de certos fatores, para além da leitura por meio de uma linguagem oficial, formal, das instituições, métodos de análise criticados pelo antropólogo.
DaMatta lembra que tal forma - incompleta - foi e vem sendo utilizada para construir as respostas aos possíveis Brasis. De maneira presumível, as respostas encontradas não têm sido satisfatórias.
"Como se pode corrigir o mundo público brasileiro por meio de leis impessoais, se não se faz simultaneamente uma série crítica das redes de amizade e compadrio que embebem toda a nossa vida política, institucional e jurídica?" (p. 121).
Para o pesquisador, seria necessário que a crítica partisse não apenas das Instituições e sistema, mas, também, da cultura, da linguagem, dos fatores históricos e sociais que caracterizam o brasil, Brasil. Algo que, genialmente, Roberto DaMatta definiu por "ter um pouco mais da casa na rua e da rua na casa" (p. 122).
[1] A Ladainha da democracia racial, por Lilia Schwarcz. Disponível em: .
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