Tiago 13/08/2022
A Terceira Margem do Rio
O mistério está às voltas em cada conto do livro. Em A Terceira Margem do Rio, um dos particularmente prediletos da coletânea e de todos os outros contos que já li, é o mistério o que mais atravessa a narrativa. É sobre esse conto que teço aqui meu comentário. Um rio é fundo, é dito pelo narrador, e a leitura de quem lê esse conto, se também não o for, vai morrer no raso. Os elementos simbólicos da narrativa precisam ser considerados: um rio tem duas margens - a de um lado e a de outro. Mas o rio do conto tem três: nessa terceira margem é onde vai o pai do narrador. Essa figura que fica estável diante do rio, que é coisa que tem um movimento contínuo. Concordo com alguns comentadores do conto quando afirmam que a ida do pai para a terceira margem do rio é rodeada de um mistério tão grande tal qual uma espécie de morte. E o filho que perpetuamente vai visita-lo sem sucesso de chamar sua atenção, até o dia em que propõe ficar no lugar do pai, nos põe a nós, leitores, diante do irremediável fato de que a morte é uma experiência intransferível, única para cada sujeito, e absolutamente rodeada de mistério. Dentro da morte não há o que entender, visto que não é o entendimento ou nada mais o que irá importar - o mesmo ocorre com a terceira margem, esse lugar para onde foi o pai.
Os parentes do filho, narrador do conto, tomam cada um o seu rumo: casam-se, vão morar com outros parentes. Menos ele. Sua devoção ao pai, seu luto insuperável causam nele uma incompreensível culpa que fica implícita ao leitor. Os anos passam e o filho já não é outra coisa senão sua culpa, sua devoção. Até que o segundo grande momento do conto ocorre: o filho propõe um lugar possível que ele possa ocupar na vida: o de entrar na canoa no lugar do pai. É quando o pai parece aceitar a proposta, acena e está voltando da terceira margem que o filho não suporta de terror; corre, retrocede. Sabe ali que o lugar do pai não pode ser ocupado. Se não for o lugar do pai que será ocupado, que lugar resta a ele? Ao fim do conto, há uma identificação ao próprio rio que corre, que leva, que segue seu fluxo.
Na clínica, nesse meu ofício de psicólogo, não é raro ouvir dos filhos enlutados um empuxo a ocupar na família o lugar dos pais mortos. Ocupa-lo não é sem sofrimento, pois esse movimento acarreta uma via direta, por identificação, que os liga ao parente que partiu para a "terceira margem do rio". Como passar a desejar um lugar para si? É essa a grande tarefa de cada um. Mesmo que não seja diante da morte dos pais, ocupar para si um lugar é enfrentar certo mistério que sustenta o viver. É construir para si a própria canoa, identificar-se não com a figura estática do rio, mas com o rio mesmo, com sua correnteza que leva, com seu fluxo.