Mari 03/03/2021
Muito interessante, mas tem alguns problemas
A série "Cidade Invisível" teve um efeito sobre mim, que fiquei com vontade de ler mais sobre o folclore brasileiro. Em geral, o livro é muito interessante, principalmente, porque tem várias lendas que eu não conhecia. Contudo, ele tem seus pontos fracos e alguns me deixaram bastante incomodada, o que influenciou na nota:
1) Nos contos indígenas, o autor se refere a alguns grupos usando nomes considerados ofensivos. Como na lenda "A Cabeça que virou Lua", o autor se refere aos huni kuin ("homens verdadeiros") usando o nome "kaxinawá", que significa "povo morcego" ou "povo canibal". O mesmo ocorre com os mebêngôkres ("homens do buraco d'água"/"homens do lugar d'água) nas lendas "Como os Kaiapós desceram do céu", "O Surgimento da Plantação" e outras, aos quais o autor se refere como "kaiapós", que significa "aqueles que se assemelham aos macacos". Acho que qualquer um consegue perceber o cunho racista que esses termos carregam e, apesar de serem mais conhecidos que os nomes com os quais os grupos se identificam, não acho que há mais espaço para seu uso no século XXI. O que realmente me incomodou foi que esse erro grotesco foi cometido por uma pessoa que teve que estudar muito para escrever esse livro, sendo que eu só precisei de uma rápida pesquisa ao Google para descobrir o quanto esses termos são desrespeitosos. Para quem ficar curioso, as fontes:
https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Meb%C3%AAng%C3%B4kre_(Kayap%C3%B3)
https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Caiap%C3%B3s
https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Huni_Kuin_(Kaxinaw%C3%A1)
https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Caxinau%C3%A1s#:~:text=Os%20caxinau%C3%A1s%2C%20tamb%C3%A9m%20chamados%20de,pertencente%20%C3%A0%20fam%C3%ADlia%20lingu%C3%ADstica%20pano.
2) As lendas são divididas em indígenas, tradicionais e perfis. As indígenas e os perfis são muito bons, mas as tradicionais não me interessaram muito. Isso se deve ao fato de que a maioria delas é tipicamente europeia, o que fez com que elas ficassem deslocadas em relação ao resto do livro. É claro que algumas dessas lendas foram incorporadas pela nossa cultura, como é o caso do Pedro Malasartes. Porém tem até conto dos irmãos Grimm, o que, com todo o respeito, é literatura alemã e não brasileira. São contos conhecidos no mundo inteiro, mas ainda assim, possuem uma forte identificação com a cultura alemã. Sem falar em contos de princesas em perigo e outros temas medievais, sendo que não houve Idade Média no Brasil. Enfim, não são o tipo de histórias que você busca quando decide ler um livro sobre folclore brasileiro.
3) A forma meio preguiçosa com a qual as lendas mais famosas foram tratadas, como o Curupira, o Saci, a Iara, mas, principalmente, o Boto cor-de-rosa. Sim, todo brasileiro conhece essas lendas, contudo ainda assim, queremos ler sobre elas mais uma vez sem ser algo superficial.
4) A Lenda do Uirapuru que se encontra no livro parece ser na realidade uma junção de várias lendas: a lenda do Uirapuru, de fato; a história de Moema, personagem do poema-épico indianista, Caramuru, escrito no século XVIII pelo frei José de Santa Rita Durão; e, a lenda da Lagoa de Peri.
Extra: senti falta das lendas do Guaraná e da Mandioca, que são belíssimas, mas entendo que não dá para ter todas.