Flávia Menezes 25/07/2023
À ESPERA DE UM MILAGRE QUE FAÇA SUMIR TODA ESSA CRUELDADE.
?A Sangue Frio? é um romance de não-ficção do escritor, roteirista e dramaturgo norte-americano Truman Streckfus Persons, mais conhecido por Truman Capote, também autor de vários contos, romances e peças teatrais reconhecidas como clássicos literários, incluindo a famosa novela ?Bonequinha de Luxo? (título original ?Breakfast at Tiffany´s?), que em sua adaptação para o cinema contou com a atriz Audrey Hepburn no papel da inesquecível personagem principal, Holly Golightly.
Por seis anos da sua vida, Capote mergulhou com muita seriedade e comprometimento, em um trabalho minucioso de pesquisas e apuração de dados e entrevistas, que contavam com mais de 8 mil páginas, incluindo os longos depoimentos compilados pela justiça, e de três anos de entrevistas as várias pessoas incluídas nesta história, além dos próprios criminosos condenados pelo crime. Capote ainda teria refeito todo o percurso feito da fuga de Richard Hickock e Perry Smith, da cena do crime até a sua prisão em Las Vegas, o que traz todo um diferencial a sua narrativa precisa sobre todos os lugares por onde a dupla passou.
Com seu ouvido de romancista e sua escrita jornalística, não há como negar o valor de uma obra como essa, onde Capote conseguiu, através de todo o material de que dispunha, ser capaz de compreender os sentidos mais profundos escondidos nas palavras dos entrevistados, e traçar um perfil tão autêntico das suas almas, dando vida em suas páginas a cada um dos envolvidos com uma maestria que nos envolve e comove em uma mesma proporção.
A forma como Capote conta essa história trágica, começando pelo último dia de vida dos quatro membros dessa respeitada família da pequena cidade de Holcomb, oeste do Kansas, até o seu brutal assassinato, dando sequência aos acontecimentos que seguiram até o momento da captura, sentença e execução dos condenados, é de um brilhantismo sem igual, e desde o primeiro parágrafo o autor nos faz mergulhar não em uma imensidão de informações sobre fatos ocorridos, mas sim na singularidade da vida de cada uma dessas pessoas envolvidas, incluindo os assassinos, onde somos convidados a olhar para cada um deles, independentemente da sua natureza, como o que realmente são: seres humanos dotados de uma história de vida.
E essa escrita apaixonada, emotiva e comprometida em apresentar pessoas que precisam ser lembradas pelo que foram, e não apenas por corpos brutalmente assassinados e sepultados, nos envolve e nos emociona de forma que conseguimos olhar para além do que os fatos nos trazem, até sentir que estamos tão intimamente ligados a cada um deles, a ponto de ouvir o pulsar dos seus corações.
Começamos a história conhecendo a vida de cada um dos membros assassinados da família Clutter (pai, mãe, um filho e uma filha), e a forma como eles são trazidos em sua essência mais puramente humana, já nos faz refletir em como a vida pode ser tão frágil, e ainda ser inexplicavelmente injusta com pessoas de tão bom coração. O que me fez lembrar daquela canção de 1993, da banda ?Legião Urbana?, em que o vocalista Renato Russo, com sua voz forte, costumava cantar: ?É tão estranho, os bons morrem jovens...?.
E essa intensa sensibilidade em cada palavra que nossos olhos percorrem página após página, sem sequer conseguir se desviar, é a mesma de quando o autor passa a nos contar a vida dos verdadeiros vilões da história, especialmente a de Perry Smith.
Bem lá no fundo, conseguimos perceber que houve uma identificação do autor com a história de vida de Perry. Afinal, ambos foram filhos de pais com uma relação bastante conturbada, que resultou em um divórcio onde cada um dos genitores seguem suas vidas, enquanto seus filhos são mandados para lares distantes onde cresceram como crianças bastante solitárias. Assim como Capote, Perry também se escondeu nos livros, porém, enquanto Capote desenvolveu desde cedo sua habilidade para a escrita, Perry, que embora também gostasse de escrever, começou a dar mais voz a algo ruim que ia crescendo dia após dia dentro dele.
As cartas que foram escritas pelo pai de Perry e por sua irmã, Barbara, são bastante emocionantes, e conseguimos sentir como essa vida conturbada e repleta de altos e baixos aconteceu para os outros membros da família, por onde a tragédia parecia rondar como uma fiel escudeira esperando por um momento de descuido para lhes trazer ainda mais dor e sofrimento.
São relatos bastante dolorosos, que logo em seguida são rebatidos pela percepção do próprio Perry, e essa excessiva necessidade do autor de mostrar como ele foi submetido a uma vida sofrida de muito abandono, e indiferença por parte daqueles que deveriam amá-lo incondicionalmente, mas que ao contrário disso, não se importaram em jogá-lo no mundo para passar por todas as dificuldades sozinho, nos faz pensar que Capote queria nos sensibilizar à respeito dele, como se buscasse justificar seus atos por conta de um passado traumático. Mas quando chegamos ao laudo psicológico de Perry, é que compreendemos com exatidão a importância de um livro como esse.
A verdade é que nem todos nós tivemos uma infância tranquila. Nem todos nós tivemos pais amorosos que nos amaram e nos educaram, demonstrando que estariam ao nosso lado independentemente do que acontecesse. Nem todos nós tivemos a oportunidade de entrar em uma vida adulta mais amparados e apoiados pelos nossos pais. E nem todos nós experimentamos ser amados incondicionalmente pelos nossos pais, nos sentindo valorizados e pertencentes a nossa família como uma pessoa única e admirada.
Alguns de nós experimentou um passado mais difícil, com pais instáveis, violentos, e distantes física ou emocionalmente. Alguns de nós se sentiu sozinho(a) muitas vezes, e precisou crescer rapidamente para poder cuidar de si mesmo(a), vivendo uma vida de tentativas e erros, e talvez até experimentando mais frustrações do que colhendo vitórias, por ter que descobrir sozinho(a) o que fazer. Alguns de nós se sentiu pouco valorizado, não amado, e até chegou a ter uma sensação de ter sido excluído de sua própria família, como se não fosse parte dela.
Porém, mesmo passando por todas essas dificuldades e sensações de desamparo e abandono, nem todos nos tornaremos o mesmo que o Perry: um homem raivoso, com ódio do mundo todo, e um desejo absurdo de ferir as pessoas para se vingar daqueles que um dia deveriam tê-lo amado e protegido. Claro que aqui, estamos falando de uma pessoa que foi afetada por situações externas, tanto quanto pela ausência de vínculo afetivo que deve ter sido causado pela indiferença dessa mãe, que resultou em uma patologia que o torna tão insensível e indiferente ao outro, a ponto de ser capaz de acabar com a vida de alguém como se isso não significasse absolutamente nada.
Mas ainda assim, tudo isso nos faz pensar em como a ausência da formação de vínculo afetivo com os pais (especialmente por parte da mãe), somado a viver em um lar disfuncional, e a uma sequência de situações difíceis e traumáticas, pode trazer consequências muito mais sérias do que um filho rebelde.
Este ano, o governador de Illinois, J.B. Pritzker fez um discurso para os formandos da Universidade de Northwestern, onde ele reflete sobre a crueldade humana. Quando encontramos alguém na vida que não é como nós, ou age como nós, ou ama como nós, ou vive como nós, é natural sentir medo ou julgar essa pessoa. Porque é normal para a nossa sobrevivência como espécie estranhar aquilo que não nos é familiar. E do quanto a crueldade é usada no nosso mundo como uma fonte de poder, enquanto a empatia e a gentileza são vistas como uma fraqueza, uma vulnerabilidade. E é aí que ele faz o alerta para a necessidade de calarmos esse instinto primitivo, e seguirmos por um novo caminho, usando a empatia e a compaixão para evoluirmos como espécie.
E essa foi a grande sacada de Capote: mostrar como a desestruturação de um lar ausente de amor, pode plantar uma sementinha do ódio que irá crescer e dar frutos com sabor de crueldade. Até porque é fácil olharmos para um criminoso e o condenarmos por seus atos de crueldade. Porém, dificilmente paramos para refletir sobre a forma como essa mesma crueldade vem se infiltrando nas nossas casas, em doses homeopáticas, vindo das redes sociais, dos filmes e programas de tv, das músicas e até de alguns livros, espelhando essas sementes do ódio que nos fazem pensar que para não sermos feitos de bobos (ou seja, sermos vulneráveis), precisamos atacar, ferir e magoar as pessoas. Como diz o ditado: a melhor defesa é o ataque, não é mesmo? Mas será que a única forma de nos defender, é atacando?
Crueldade é crueldade, independentemente do nível. Até porque se deixarmos de sentir compaixão por aqueles(as) a quem de algum forma provocamos algum tipo de sofrimento, então é porque alguma coisa está muito errada em nós. Sem contar que não devemos nos iludir, porque a crueldade não permanece sempre do mesmo tamanho. Ela sempre cresce! Assim como a forma como magoamos e ferimos as pessoas.
Agora, uma parte desta história que muito me tocou por ter sido inesperada e ter me lembrado do romance de ficção de Stephen King, ?À Espera de um Milagre?, onde um criminoso aguardando sua execução no corredor da morte, faz de um rato seu melhor amigo, em "A Sangue Frio" Perry adestra e faz de um esquilo o seu melhor amigo. Certamente um momento igualmente tocante e muito sensível.
?A Sangue Frio? é um romance de não-ficção que ao mesmo tempo que traz eventos trágicos que aconteceram com uma família que nada disso merecia, também nos faz um grande alerta sobre pontos muito importantes, tais como da importância de que uma criança possa viver um lar onde se sinta amado e protegido, de que os problemas entre os pais devem ser mantidos entre eles e só diz respeito a eles (faz muito mais mal para um filho viver em um lar onde os pais brigam e não demonstram amor entre si, do que ver seus pais separados), e o principal, de compreendermos a seriedade das doenças mentais, e de que, quanto antes forem diagnosticadas e tratadas, sem dúvida muita dor e sofrimento poderá ser poupada, e menos casos como o da família Clutter aconteceriam.