Letícia 20/11/2012Os verdadeiros paraísos são os que perdemos...Em Busca do Tempo Perdido é a história de uma verdadeira busca espiritual que deu certo. Busca que o volúvel e preguiçoso Marcel perde a esperança de empreender, desacredidando no seu talento para a literatura, envolvido demais com o mundanismo e suas belas meninas em flor.
O tema do livro não é a memória, voluntária ou involuntária, como pode parecer no começo da leitura. A memória é apenas um meio limitado de ressituar-se no Tempo, encontrar-se nele. A descoberta da vocação literária do herói, e tudo que culmina na descoberta desta vocação e faz parte do aprendizado dele, é o tema principal. O livro termina quando ele começa a escrevê-lo: aquele tempo aparentemente perdido, aqueles dias banais, se tornam uma das mais magníficas obras da literatura. Porque Marcel vai compreender que a verdadeira genialidade do artista não está no tema, mas na forma, sua expressão estética. A memória na obra adquire uma função maior que a simples rememoração, ela se torna um instrumento de aprendizado para inteligência, e possibilita ultrapassar os limites das impressões momentâneas, que estão sempre a mercê do eu em seu estado atual, construindo assim uma análise extratemporal, com um significado mais amplo, mais completo.
A famosa madeleine molhada no chá é só a primeira dessas manifestações de memória involuntária que farão o narrador pressentir uma realidade, uma verdade, para além da realidade cotidiana. Os hábitos entorpecem a sensibilidade necessária para debruçarmos sobre essas vislumbres de uma outra vida. A madeleine não tem nada de extraordinário em si, ela é um signo, que encerra o significado dessa sensação que traz tanta alegria a Marcel porque ela remete a um tempo que não é o passado, mas que se situa fora do Tempo e está diretamente ligada à eternidade: a comunicação com um eu adormecido. Quando a inteligência e a razão se descuidam, podemos visualizar de relance, preso a qualquer objeto, sabor ou cheiro, uma dessas visões de sonho que conversam diretamente com nosso espírito, que nossa inteligência não consegue compreender.
A arte, a contemplação do prazer que ela causa, é o que Marcel acredita ser o caminho para esse encontro com um sentido verdadeiro da vida. Porque uma obra de arte se comunica diretamente com o esse mundo de sonho e beleza, não podemos apreciá-la com a razão, e um artista não é necessariamente alguém mais culto ou inteligente, mas um Elstir, homem de valor intelectual admirável, que se torna ignorante para pintar, se desliga de todas as noções da inteligência e cria visões de mundos ideais, onde o céu se liga com o mar, não porque realmente devesse ser assim, mas porque é assim que enxergamos, mas o hábito, a razão, a vida, nos ensina que é só uma ilusão, impedindo a apreciação de uma beleza que não é dos fatos, mas dos significados.
Todo esse aprendizado, que transforma o narrador em autor, é feito através de grandes expectativas, imensas decepções, muita dor e um pouco daquela alegria que aprendemos a sentir quando descobrimos que a felicidade não provém dos outros ou das coisas, mas de nós mesmos. Percorrer as páginas desse romance é como ouvir uma melodia pela primeira vez, a Sonata de Vinteuil - tão fictícia e linda que dá saudades de ouvir uma música que nunca existiu -, onde no primeiro momento, sem a memória, não pode ser apreciada em toda a sua profundidade, mas que à medida que ela retoma aos seus próprios temas, nossa inteligência apreende a beleza que nosso espírito sempre intuiu haver nela. É por isso, detendo a posse dessa revelação, que terminamos a obra com uma imensa vontade de relê-la, para somar impressões mais completas com nossa leitura retrospectiva.
O confronto da pessoa do artista com sua criação, o fazer artístico, o aprendizado dos signos da arte, podem ser traduzidos num personagem, a de sua musa Albertine: a figura oscilante e atrevida à beira mar, que irá se destacar aos poucos do grupinho de meninas que tanto perturba Marcel e cuja visão no litoral é digna de ser pintada por um Elstir. A jovem bacante surgida no dique de Balbec irá oferecer muitos aspectos para a interpretação do ciumento Marcel, tal qual o campanário de Martinville, outra impressão importante que o narrador tem e que com ela se repete a sensação tida com a madeleine. Além disso, o próprio nome dos lugares e dos seres irão interessar muito o narrador, devido à sua deficiência em conter os significados e expectativas que depomos neles, e também pelo face diferente que um mesmo nome nos apresenta no decorrer da vida.
Nenhum ser, nenhum objeto ou uma história é um todo, completamente constituído. Colocamos muito de nós em tudo, e também no livro. Proust escreve com essa consciência de ser um intérprete de nós mesmos. Portanto, Em Busca do Tempo Perdido pode ter um horizonte infinito de leitura, a limitação só é determinada pela maturidade ou experiência do leitor.
É uma longa leitura, mas não é difícil. O texto é rebuscado, num sentido mais de forma que de vocabulário. As longas frases e intermináveis parágrafos são famosos, e extremamente belos. Não é uma história de fatos, mas de experiências, portanto nada tem pressa de acontecer e a maneira como acontece ganha um significado imenso. E também é um retrato divertidíssimo da época, das pessoas e do próprio Marcel. É, Proust é muito engraçado. Através do riso, ele consegue o distanciamento necessário para falar de questões controversas, e mesmo que alguns achem que ele não é satisfatório como autor da causa homossexual, em minha opinião ele é visionário! Ele não é condescendente com ninguém, suas preferências e opiniões pessoais não comprometem a estética do romance. É um artista perfeito.
A arte é mais precisa que a ciência e a literatura é mais completa que a vida.
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