spoiler visualizarskuser02844 11/08/2014
O Coming-of-Age de Ramsés
Para quem viu a bela capa de “Ramsés – O Filho da Luz” da Editora BestBolso e se sentiu magnetizado, digo que o livro é uma boa iniciação sobre a sociedade egípcia na época de Ramsés II e uma iniciação também sobre a Jornada do Herói, seguindo os passos tradicionais que leitores já estão carecas de saber. A previsibilidade da história é enorme e Jacq trata de sua narrativa como se fosse muito inédita, mas o primeiro volume dessa série de cinco livros dedica-se ao coming-of-age de Ramsés, sua transformação de adolescente bem nascido para príncipe do Egito. A obra descreve o processo de amadurecimento do futuro Faraó, passando pelas fases clássicas da adolescência como o de que caminho seguir, o da verdade e felicidade individual contra a carreira e as tradições, as amizades, com o grupo de amigos do Kap que seguem diferentes destinos, até a perda da virgindade. Digamos que o estalo entre a infância e a adolescência de Ramsés seja o touro selvagem e toda sua simbologia do poder.
Acompanhamos sua jornada até o garoto se transformar no grande regente do Egito, após inúmeros desafios e provações. Há tentativas de assassinato de Ramsés que dão origem a uma fraca sub-trama investigativa; há a constante “guerra fria” contra seu irmão mais velho Chenar, que pretende tomar seu posto de regente pela esperteza e implantar seu plano de governo econômico no Egito (que provavelmente iria o arruinar), mas o irmão gordo não sai muito de suas ameaças e sua inatividade; há a necessidade de conter revoltas e batalhas; há vários processos que Ramsés precisa ultrapassar para conquistar seu grandioso futuro, mas engana-se quem procura no livro momentos épicos e emocionantes.
O romance de Christian Jacq, lançado em 1995, tem seu principal atrativo na representação do Egito e sua civilização, desde as formas de ordem e justiça até suas adorações a grandes divindades, forças de criação da natureza, pela qual nutrem grande respeito. Tem-se muito destaque à hierarquia egípcia e os jogos de poder e interesses que acontecem nas cortes e nos bastidores do poder. Os hábitos, as tradições, o modo de pensar e viver são retratados com naturalidade, com a transposição competente do leitor ao mundo egípcio, como se vivesse junto aos costumes e cotidiano daquele país. A galeria de personagens é boa, destacando o desenvolvimento de Sethi e Ramsés, a esperteza do irmão Chenar (apesar de travado), o encanto das personagens femininas, e as interessantíssimas participações de figuras históricas de alguma forma relacionadas ao Egito, como Moisés, adolescente perturbado e com talento para a matemática, acolhido e educado pelos egípcios, e que futuramente seria o profeta e líder do povo hebreu, e alguns singulares da Grécia Antiga.
O guerreiro Menelau, o poeta Homero e a desejada Helena, além da companhia de parte do exército grego, fazem estadia no Egito enquanto se recuperam da vitória em Tróia. Esses personagens da mitologia grega enriquecem a trama principalmente na antítese das ideias gregas e egípcias. A forma de governo, a posição da mulher, a hierarquia e os escravos, a lealdade à palavra, são vários os atritos entre as duas civilizações. Enquanto a Grécia desponta como o berço da cultura ocidental e democracia, o Egito se mantém forte em suas tradições e estratificações. É claro que a imagem passada pelo autor é a da superioridade egípcia, retratando os gregos como um povo violento e pouco confiável, e os egípcios como uma sociedade de paz e justiça, prosperidade e misticismo, sempre seguindo o ideal de Maât.
Deve-se lembrar também de que Christian Jacq é um egiptólogo fanático, portanto a obra parte de seu ponto de vista apaixonado e duvidoso sobre o Egito, sua civilização e sua política, suas divindades e personalidades, o que fica claro na imagem que o autor traça de Ramsés, um líder natural, imperador justo, herói incorruptível, e sua fidelidade ao ideal de justiça de Maât, mostrado no livro como a chave da ordem e da hierarquia saudável. Apesar de esqueleto histórico, a obra se incorpora numa mistura de realidade e ficção que pode confundir os menos avisados, e de certa maneira diminui o efeito de realismo passado.
Apesar de ter sido uma leitura agradável, não me senti instigado a continuar a saga de Ramsés, levando em conta somente este primeiro volume. A escrita de Jacq é bem simples, fácil e fluida, lembrando a linguagem pura e simbólica de textos sagrados (e seus diálogos cheios de frases de efeito), porém a rapidez da história e a superficialidade em sua abordagem, a brevidade dos picos de emoção e as intermináveis quebras e divisões de capítulos acabam atrapalhando o ritmo e a absorção da narrativa que de épica tem bem pouco.
A impressão é a de constante movimento de uma história que pouco evolui, martelando repetições e prometendo sempre grandes traições, batalhas e revoltas que recebem um desenrolar frustrante. Muitos personagens recebem desenvolvimento irregular, mas a verdadeira trajetória é a de Ramsés e suas milhares de provações de coragem e honra, suas milhares sessões de devoção e cenas de amor com suas mulheres e sua imagem crescente de grande e justo líder, com a passagem final da energia vital de Sethi para seu sagrado filho. Mesmo com o acontecimento final do livro sendo decisivo, Jacq faz com que todas as antigas dúvidas dos personagens retornem e os impeçam de evoluir, assim como a narrativa. Prevejo que os acontecimentos vão ganhar desenvolvimento nas sequências, mas mesmo assim é um livro que não se sustenta por si só, levando em conta sua unidade, encerrando-se numa leitura satisfatória apesar da incompletude.