Carlozandre 24/11/2014
A serviço de sua satânica majestade
Muito já se leu que O Castelo na Floresta, último romance do gigante americano da ficção Norman Mailer, é uma biografia de Adolf Hitler. Não de todo. O pequeno Adolf está ausente ou tem pouca importância até depois da metade do livro, e a narrativa se ocupa mais da formação e das paixões do pai, Alois, do que do próprio Adolf Hitler. Tanto que o volume se encerra por volta de 1903, data em que Alois morre de um colapso motivado por seu alcoolismo. Nessa altura, Hitler estava prestes a completar 13 anos e já havia sido reprovado duas vezes na escola, que logo abandonaria.
Mailer interrompe sua narrativa da vida de Hitler tão cedo porque planejava uma trilogia sobre o personagem, e sua família já informou que deixou material escrito do segundo volume, cuja publicação ainda será estudada dependendo de quanto o autor avançou na história. O Castelo na Floresta, contudo, é um livro que pode ser lido de forma autônoma, e ao mesmo tempo ganha novas ressonâncias se comparado com o romance anterior de Mailer, também ele uma ficionalização sobre a vida de um personagem “histórico”: o Jesus Cristo retratado em O Evangelho Segundo o Filho (1998).
Os dois livros servem, talvez intencionalmente, como espelhos. Se, no primeiro, Jesus contava sua história apresentando-se como um trabalhador colhido a contragosto em um plano divino além de seu controle, em O Castelo na Floresta Hitler é descrito como o produto final de uma família plena de relações brutais e casos de incesto – também acompanhados de perto por agentes de um plano exterior ao humano. O narrador primeiro se apresenta como Dieter, um oficial de alta confiança do chefe da S.S. nazista, Heinrich Himmler, para mais adiante revelar ligações com um tipo de organização mais poderosa.
Dieter é na verdade um demônio de escalão intermediário alistado no exército do “Maligno”em sua eterna luta contra o “Criador” pelo controle da Terra. E o menino Hitler se revela desde cedo uma presa cobiçada pelas hostes do Mal, razão pela qual o narrador da história está tão familiarizado com sua vida. Se no Evangelho... Mailer discutia a dicotomia entre as naturezas humana e divina do Cristo, agora é a dualidade entre o humano e o infernal que está em questão.
Boxeador na juventude, Mailer ainda escreve como quem chama seu tema para a briga. Aproveita as lacunas da documentação na biografia de Hitler e de sua família para apresentar sua versão da história doméstica do menino austríaco. Em sua monumental biografia em dois volumes "Hitler", o historiador Joachim Fest informa que a certidão de nascimento do pai de Hitler, Alois, dava-o como criança “ilegítima” de pai desconhecido. No primeiro volume, Fest enumera três pais possíveis. Mailer transforma dois deles em meio-irmãos da mãe de Adolf, na primeira de uma série de ligações incestuosas que marcará a família e culminará na própria mãe do garoto, Klara, possível sobrinha do pai de seu filho.
Na história de Mailer, Klara não apenas era filha de uma meia-irmã de Alois como também sua própria filha, resultado de uma ligação de juventude, o que tornaria Hitler um produto de escândalos de sangue comparáveis à da família grega dos Labdácidas, a de Édipo, Laio e Antígona. Escândalos de sangue que, na tradição clássica, redundam em tragédia. Com a interferência do demônio, os incestos da família Hitler gestam uma tragédia não para uma linhagem, mas para a humanidade.
É uma platitude dizer que as escolhas narrativas de um escritor condicionam o resultado da obra. Mas não deixa de ser verdade, mesmo no que diz respeito a um estilista vigoroso como Mailer. A opção por esse narrador que se apresenta textualmente como “um oficial das fileiras do melhor serviço de inteligência que jamais existiu” é uma aposta arriscada porque se equilibra no gume de uma dualidade instável. Por um lado, arrolar Hitler como um “cliente” das hostes do Maligno é tomar o caminho fácil de atribuir um caráter sobrenatural ao mal nazista, como se a endossar a ideia de que infâmia tão absoluta só poderia ser cometida além (e fora) da simples condição humana. Uma tese que parece deslocada quando pensamos no sucesso artístico obtido por obras que se pautam justamente na negação dessa premissa, como o filme A Queda, de Oliver Hirschbiegel, com Bruno Ganz, ou o romance As Benevolentes, de Jonathan Littell, nos quais as razões do horror são humanas, demasiado humanas.
Por outro lado, Mailer vai na contramão. Não humaniza os malfeitores, e sim o mal em si. Transformar as hordas infernais em um serviço de inteligência, duplicando a S.S. de Himmler, é um dos grandes achados de Mailer nesse romance. Por meio da voz iconoclasta desse espírito maléfico que é tão burocrata em suas funções quanto qualquer funcionário humano na maquinaria estatal nazista, o romancista pode dar vazão à ironia e à verve de que lançou mão em seu clássico Os Degraus do Pentágono. Os demônios admiram a criatividade da obra de Deus. Este, por sua vez, não é onisciente e onipotente, mas depende de um serviço de inteligência de anjos similar à agência de demônios da qual seu inimigo lança mão.
E ao fim do livro, Hitler mantém algo de seu grande enigma, já que o narrador escolhido por Mailer é um funcionário de segundo escalão, que por vezes recebe ordens diretas de seu infernal comandante, mas não priva de sua intimidade, confiança ou conhecimento. Mailer pode ter entrado na mente de Jesus, mas não ousa se apossar da consciência de Satã. Indício de que, mesmo para algumas das melhores mentes do planeta, os aspectos essenciais do mal permanecem um mistério.