Dani 14/08/2014Mistério e poesiaBanidos é um livro que eu li ano passado e tive muita vontade de reler porque estava com saudades daquela narrativa. Não foi uma escolha tão racional assim e vou explicar o porquê depois, mas eu fiquei com vontade de resenhá-lo para vocês mesmo assim. Ah! Um aviso, se tiver a oportunidade de ver um livro físico, não leia as orelhas!
A história se passa, inicialmente, em Gypsum uma cidade pequena no estado norte-americano do Missouri. A nossa protagonista é Hailey, uma garota de 16 anos que vive num bairro pobre e violento da cidade, ela mora com a avó Alice - uma senhora ranzinza, cruel e criminosa – e Chub, seu “irmão adotivo” de quatro anos e com problemas de desenvolvimento.
A vida de Hailey nunca foi fácil, sempre sendo destratada pela avó, tendo que conviver com os clientes dela, e sendo a responsável por cuidar da casa e de Chub. Esses dois últimos são as únicas coisas que ainda deixam-na um pouco feliz, sobretudo Chub a quem ele ama muito. Hailey sequer teve uma vida escolar normal, ingressando no ensino oficial somente quando já tinha 8 anos, porque os assistentes sociais haviam pressionado sua avó. Nunca conheceu os pais.
“Sim, tinha cicatrizes; a agonia arrefecera para uma dor contida que agora fazia parte dela, tanto quanto respirar. Mas nunca esquecera.”
Tendo passado por tudo isso, Hailey aprendeu a se virar sozinha em muitas situações da vida, encarou por ela mesma alguns dos desafios de se crescer como uma criança pobre, mesmo na escola nunca teve amigos. Ainda assim, a menina conserva um senso de valores muito grande e mostra-se como uma personagem muito amável e com caráter forte.
“Mas nossos olhos se encontraram e uma energia sombria foi transmitida nesse olhar demorado, e eu soube que ele não partiria.”
O grande ponto da história começa quando, durante uma aula de educação-física, uma das colegas de classe de Hailey, que mora no mesmo bairro que ela, fica gravemente ferida. Enquanto todos entram em pânico, nossa protagonista sente apenas um desejo incontrolável de tocar a outra garota, como uma energia pulsante em seu sangue. E, surpreendentemente, é o toque de Hailey que faz a outra garota recobrar a consciência e ter uma boa recuperação. Mas ela percebe que sua colega ficou aterrorizada com o que ela fez, apesar de ela não entender realmente o que fez.
“Um segundo depois minha visão se apagou. Não creio que tenha fechado os olhos, mas tudo desapareceu e foi como se eu estivesse olhando para o tempo, vendo-o se mover para a frente e para trás ao mesmo tempo, como se eu houvesse saltado de um penhasco e pairasse no ar em algum lugar do espaço vazio e negro.”
Durante os próximos dias as coisas ficam cada vez mais estranhas para Hailey: há um carro misterioso que parece “segui-la”; ela nota um comportamento mais estranho e atrevido dos clientes de sua avó e as reações incomuns da sua avó; sente uma necessidade de se aproximar dos Morries (outras crianças que moram no mesmo bairro que ela), mas há o terror crescente que os Morries cultivam contra ela; existem homens estranhos garimpando informações na cidade; ela faz uma descoberta de objetos antigos e tem uma sensação inexplicável de ligação e pertencimento a algo secular; ocorre um terrível acidente com Rascal – seu cachorro e recebe uma visita completamente inesperada.
“Deslizei a ponta dos dedos pelas palavras, como se tocá-las pudesse trazer as repostas para as minhas perguntas, como se, de alguma forma, o gesto pudesse revelar o que eu devia fazer. Porque eu tinha certeza de que havia sido escolhida para alguma coisa...”
É uma história muito rica em mistério e misticismo. Somos apresentados aos Banidos, um povo originário da Irlanda que possuem dons especiais e hereditários: visão para os homens e cura para as mulheres. Somos levados a entender como a dispersão da comunidade e distorção dos valores podem levar as gerações a perderem os dons originais, e também compreendemos que eles podem ser tanto uma benção quanto uma maldição, se não usados com sabedoria e cautela.
Um passado que Hailey desconhecia vem à tona para abatê-la, mas também para salvá-la. Tudo depende de em quem ela depositará sua confiança, e para alguém que cresceu como Hailey, confiar é algo extremamente tentador, mas difícil. “Banidos” é uma história repleta de ação, mistérios, revelações e poesia.
“A verdade é que queria desesperadamente acreditar nela. Queria que ela me resgatasse. Mas receava acreditar nela, ter esperanças, e depois vê-la desaparecer como todas as outras coisas boas que eu sempre desejei.”
A narração do livro é em primeira pessoa, feita por Hailey, mas alguns dos capítulos iniciais possuem uma narração em terceira pessoa, sob o ponto de vista de uma outra jovem, cruciais para a compreensão do que vem a partir do ponto em que ambas as narrações se encontram.
“E também sentia, uma sensação profunda cujas raízes estavam cravadas naquele ponto em que o instinto supera a razão, que ele não estava morrendo.”
A escrita tem muita poesia, intensidade e é envolvente, as partes descritivas não são tão extensas, mas em algumas partes esparsas a narração fica um pouco repetitiva. As cenas de ação são perturbadoras e inquietantes. As personagens são muito bem construídas, assim como o arco da história. Ao ler o final você tem aquela sensação que as páginas estão acabando e as coisas estão se resolvendo, mas algo crítico te espera na última linha. E o livro termina com um baita cliffhanger.
“- As pessoas podem se convencer com muita facilidade, sabe, quando quere. É da natureza humana.”
Aqui vem a parte sobre a minha irracionalidade em reler esse livro, apesar de tudo. “Banidos” foi publicado no Brasil pela Editora Underworld que fechou suas portas antes de lançar o segundo volume da série. Eu li o livro pela primeira vez antes dessa fatalidade, então tudo bem, mas agora o reli. Por quê? Justamente pela vontade de experimentar de novo a força dessa narrativa. Espero que alguma outra editora fique atenta a esse contrato e venha a publicar a série. Aliás, seria muito inteligente ficar atento a todas as obras do catálogo da ex-editora, pois todos tinham grande potencial, uma pena que a editora fosse pequena.
Sobre a edição que a Underworld fez: que coisa linda! De encher os olhos e o coração gente! O efeito dos padrões na capa, a diagramação do interior do livro, o início de cada capítulo... é tudo encantador! A revisão possui alguns deslizes, a tradução também falhou em algumas expressões gramaticais e ás vezes a pontuação dos diálogos ficou imprecisa, nada que prejudique realmente a fluidez da leitura, mas no caso de uma republicação devem ser pontos observados com mais cuidado.
Feitas essas observações, o que tenho a dizer é: se você for capaz de abrir mão da falta de uma continuação publicada aqui, quiser experimentar uma leitura diferente e envolvente, ou tiver meios de acesso ao segundo volume em inglês (ou outro idioma)... Eu definitivamente recomendo “Banidos”.
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http://1000-vidas.blogspot.com.br/2014/08/resenha-19-banidos-sophie-littlefield.html