Lucas 29/07/2016
Como uma onda no mar...
Um romance de exílio possui uma particularidade que o separa dos demais: exalta-se em seu contexto narrativo o sentimento, normalmente dramático e incerto, carregado pelo autor nesta situação. Há na narrativa traços que evidenciam a saudade de casa, a solidão reprimida e a observação e contemplação do asilo do refugiado. É especialmente este último traço que sustenta toda a narração de Os Trabalhadores do Mar, lançado em 1866 por Victor Hugo.
A obra entra nesta categoria de romance, pois foi elaborada durante o exílio de Hugo na ilha de Guernesey (ou Guernsey, de acordo com as referências mais atuais), situada em um arquipélago no Canal da Mancha. Contrário ao governo de Napoleão III e favorável a ideias democráticas, Victor Hugo iniciou seu exílio em 1855 e lá ficou por 15 anos. Neste período, concluiu a construção de sua obra-prima, Os Miseráveis (1862) e 4 anos depois lançou Os Trabalhadores do Mar, como uma homenagem a seus anfitriões, como bem é retratado antes do início da história.
A edição da Cosac Naify, lançada em 2013, é impecável em termos estéticos e literários. Uma caixa rígida azul reveste o livro e há um excelente texto introdutório da Profª Barbara Freitag Rouanet, além de um outro texto do autor após o fim da narrativa. Antes da história iniciar, a edição trás um texto do próprio Victor Hugo, descrevendo praticamente tudo o que cerca a ilha de Guernesey, desde os abalos cataclismos que a fizeram surgir até a população daqueles dias, que estava ficando cada vez mais britânica e menos normanda (a região é controlada pela coroa britânica desde o século XIII. Atualmente, a influência inglesa é muito mais forte que a francesa, apesar de o arquipélago situar-se a menos de 50 km do litoral da França). Este texto (longo, de quase 100 páginas) descreve também a presença das outras ilhas do arquipélago, como Serk e Jersey. Se o leitor já leu Os Miseráveis sabe que Hugo é extremamente minucioso e detalhista em suas análises e descrições: tudo, sob a influência de sua pena, adquire um caráter filosófico. Quando o futuro leitor descobre que o livro foi escrito por Victor Hugo nestas condições (em uma ilha isolada não muito conhecida pelo povo não-europeu, tendo a infinidade do mar como pano de fundo e situando a história 40 anos antes, na década de 1820), já é possível antever o quanto a narrativa é minuciosa. Esta “minuciosidade” cansa em alguns momentos, especialmente no primeiro terço da história. A narrativa é lenta, arrastada, com poucos diálogos e muitas descrições.
Contudo, a história vai se desenrolando e, após este primeiro terço, fica bem mais interessante, voltando a um certo “marasmo” no terço seguinte. De certo modo, a narrativa é como ondas no mar: ora mais agitada, ora mais calma, mas sem perder o fascínio. Em resumo, Os Trabalhadores do Mar conta a história de Gilliatt, marinheiro misterioso que se apaixona por Déruchette. A moça é “filha” de Lethierry, armador e comerciante, proprietário de uma inovação na época, um barco a vapor. Este barco corre perigo (por motivos que não podem ser citados aqui) e Gilliatt se propõe a salvá-lo. No quarto final da primeira parte (o livro tem três partes), há uma grande reviravolta, que contribui decisivamente para a redução do caráter monótono da narrativa. A editora manteve a tradução de Machado de Assis, lançada no Brasil quase que imediatamente após o lançamento na França. Esta tradução, no entanto, não é nem um pouco “rudimentar” em relação aos padrões atuais do português; a linguagem é idêntica a de outros clássicos estrangeiros.
Paciência é, sem dúvidas, o atributo mais marcante que o leitor deve ter ao se aventurar nesta obra. O enredo é uma ótima mistura de romance, aventura e drama, permeado com infinitas digressões, muitas delas com grande carga filosófica. Quem gosta ou conhece a escrita de Hugo é ciente de que a polidez e o detalhamento de suas descrições trazem verdadeiros ensinamentos a quem passa os olhos por suas linhas. Ele era um autor de pensamentos, não de frases; seus ensinamentos eternos, sutilmente colocados na narrativa e em suas reflexões, eram compostos por parágrafos, e não por simples enunciados de algumas palavras. Esta característica, por sinal, é a maior nuance de suas exaustivas descrições: a qualquer momento, o leitor é abatido por uma reflexão com substância e sentido eternos.
Assim, Os Trabalhadores do Mar é um belo romance, nos padrões “hugoanos”. Quem nunca teve contato com o texto e estilo narrativo do escritor/poeta/dramaturgo/político Victor Hugo vai, certamente, se assustar com a minúcia em alguns momentos. Mas a leitura da obra é recomendada, sobretudo em função do desfecho, alvo de algumas críticas, mas, inegavelmente surpreendente, e dos ensinamentos expostos nas reflexões e da história contada, que é repleta de drama, idas e vindas. A chave é paciência: a narrativa pode cansar, mas ensina muita coisa, tocando na alma em vários momentos.