Estêvão 19/11/2020As fronteiras entre fato histórico e ficção são questionadas a todo momento no ótimo Soldados de Salamina, de Javier Cercas. Assim, ao buscar se informar sobre os dias de Rafael Sánchez Mazas após este conseguir fugir de um fuzilamento, há um procura constante por detalhes e fatos não registrados pela historiografia oficial, encontrando na tradição oral e em fontes literárias elementos para a reconstrução desses acontecimentos.
Sánches Mazas é uma figura emblemática na história espanhola. Poeta e líder da Falange, movimento fascista espanhol, foi também uma das lideranças mais próximas do ditador Franco. No entanto, um lance de sorte fez com que sua vida não fosse interrompida, quando, na guerra civil, após ser capturado e fugir do fuzilamento, é encontrado por um soldado inimigo, que o deixa escapar.
Dessa forma, após ter conhecimento, por meio do filho de Mazas, desse fato, o jornalista e escritor Javier Cercas parte em busca de personagens que conviveram com Mazas e o ajudaram a viver alguns dias escondido de seus inimigos. Também ciente de que Mazas, como escritor, tinha o desejo de recontar esse fato de sua vida junto a essas pessoas e batizar o livro de Soldados de Salamina, Cercas toma para si essa tarefa.
Um dos aspectos mais interessantes dessa obra é a forma como consegue trazer fatos históricos em uma narrativa literária, desfazendo a ideia de que alguns discursos possuem mais autoridade que outros ou, até mesmo, questionando o que seria isso que chamamos de história.
Essa provocação fica clara no confronto que faz entre tradição oral e escrita, uma vez que, não havendo registros sobre Mazas quando este estava escondido, Cercas obtém essas informações com as pessoas que deram abrigo ao futuro franquista; os relatos foram feitos com minúcias e sem contradições. Bem como, ao buscar nos arquivos de uma prisão informações sobre um dos personagens, Cercas quase não o encontra por um simples erro de grafia. Enfim, qual forma de registro é mais confiável para registrarmos a história?
O constante questionamento sobre se Soldados de Salamina é um romance ou um livro “sobre fatos reais” joga mais elementos a respeito do debate, em especial na terceira parte, na qual Cercas encontra-se com Roberto Bolaño, nos dando ótimos diálogos sobre o fazer literário, história, representação, realidade e vários outros temas relacionados à discussão.
Inclusive, o fato de trazer Bolaño para o livro já coloca a própria obra que lemos debate, nos fazendo questionar se esse encontro de fato aconteceu e contribuiu para a construção do livro que temos em mãos ou foi um elemento ficcional inserido nele?
Dessa forma, ao trabalhar entre a ficção e fatos históricos, Cercas cria uma obra que não apenas nos faz refletir sobre o que seria a história, mas sobre a verdade em si e sobre como a palavra, seja escrita ou oral, tem o poder de moldar a nossa realidade, reforçando o que João Ubaldo Ribeiro diz na epígrafe do seu Viva o povo brasileiro: “Não existem fatos, existem histórias”.
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