Diego Lunkes 27/10/2018
Me chame de mal-humorado se quiser, mas a verdade é que eu raramente dou risadas enquanto leio um livro que pretende ser engraçado. E tudo bem. Como já nos ensinou Shakespeare em sua peça "Rei Lear", nem sempre nossas expressões refletem nossas emoções: Goneril e Regan seduzem Lear com belas, mas falsas, palavras afim de herdarem a fortuna de seu pai, enquanto a pobre Cordélia é falsamente acusada de desafeto por demonstrar seu amor de forma simples, embora verdadeira. Woody Allen é um cineasta que arranca grandes risadas de mim através de seus filmes, mas o mesmo não acontece quando leio suas histórias. E, de novo, tudo bem, pois isso não significa que seus contos não sejam divertidos.
Pelo contrário, sua primeira coletânea de contos, "Cuca Fundida", se apresenta uma leitura muito divertida. Um dos recursos humorísticos utilizados por Allen aqui é a fusão de arquétipos de histórias amplamente conhecidas com situações absurdas. Como, por exemplo, no conto de abertura "O Cara", onde discute filosofia usando os clichês das histórias noir na voz de um detetive que investiga a morte de Deus.
"‘Continua procurando Deus?’
‘Continuo.’
‘O tal Onipresente, Onisciente e Onipotente? Criador de Todas as Coisas e tal e coisa?’
‘Ele mesmo.’
‘Alguém com essa descrição pintou no necrotério. Venha dar uma olhada.’
Fui correndo. Quando cheguei lá, não tive dúvidas: era Ele. E, pelo Seu aspecto, tinha sido um trabalho profissional."
Ou ainda, mais notavelmente, quando subverte a clichê cena, que todos conhecemos, onde a Morte, encapuzada e portando uma foice, aparece para ceifar a vida de um desafortunado. No universo de Allen, a Morte não bate à sua porta, e sim à sua janela… do segundo andar… após subir pela calha… arfando. E depois de chegar com muito esforço até sua vítima, ainda tem de jogar uma partida de cartas barganhando uma vida.
"Nat: Quem é você?
Morte: A Morte.
Nat: Quem?
Morte: A Morte, pô! Escute – posso me sentar? Quase fui para o beleléu. Olhe só como estou tremendo."
Alguns contos, como "Correspondência entre Gossage e Vardebedian", apostam no exagero. Este, em particular, apresenta um jogo de xadrez conduzido entre duas pessoas através de instruções trocadas por correspondência. A demora de semanas entre um movimento e outro do jogo, além da polidez caricatural empregada nas mensagens, transformam uma ação banal em algo absurdo.
"Acabo de analisar sua carta, contendo um estranho 46º movimento, no qual sou convidado a remover minha rainha de uma casa que ela não ocupava há 11 dias."
Mesmo quando escolhe abrir mão das estruturas de histórias mais conhecidas para utilizar figuras históricas, ainda assim Allen não subestima seus leitores e aposta num humor que depende que tenhamos um conhecimento mínimo a respeito de quem foram e o que fizeram pessoas como Freud, Shakespeare, Platão, Goethe, Voltaire, F. Scott Fitzgerald, Dali, T. S. Eliot, Picasso, Hemingway, entre muitas outras menções que figuram em seus contos. Além de entreter o leitor com histórias e figuras populares, Woody Allen ainda exercita uma variedade de estruturas narrativas, contando histórias através de listas (Os Róis de Metterling), de uma peça teatral (A Morte Bate à Porta), de uma cronologia (A História de uma Grande Invenção) ou de textos do judaísmo (Contos Hassídicos).
E sim, apesar de tudo isso, as 15 histórias quem compõem o primeiro livro de contos de Woody Allen podem não ser engraçadas ou geniais como os seus melhores filmes o são, mas, conforme fica claro ao longo da leitura, isso se devem antes aos seus primeiros passos no gênero literário do que ao um esforço para entreter o leitor. Pois, se falta algo para que "Cuca Fundida" funcione como seus filmes, certamente não é criatividade.
site: https://barbaliterata.wordpress.com/2018/10/27/cuca-fundida/