jota 25/08/2018Cara Mara...Cheguei a Natalia Ginzburg (1916-1991) vendo a reprise de um programa da TV Cultura, Letra Livre, em que o entrevistado, o escritor Cadão Volpato, afirmava que Caro Michele era seu livro preferido e Ginzburg sua autora predileta. Geralmente os escritores escolhem homens como seus autores preferidos (Cadão mesmo diz isso), então fiquei curioso para conhecer ao menos uma obra dessa escritora italiana e escolhi ler Caro Michele. Mesmo tendo visto sua adaptação cinematográfica (o filme homônimo é de 1976; o romance é de 1973) e não apreciado tanto assim. Acho que o filme ficou meio perdido entre drama e comédia e me pareceu um tanto envelhecido. Também porque transformar cartas em imagens não deve ter sido tarefa fácil para os roteiristas.
Resultou num filme fraco mesmo tendo a direção do competente Mario Monicelli (do impagável Parente é Serpente e outros filmes memoráveis) e o roteiro dos brilhantes Suso Cecchi D’Amico e Tonino Guerra. Mas vamos lá, ao livro preferido do Cadão: Caro Michele conta a história de um filho perdido, que abandonou a família bem jovem para escapar do ambiente político nebuloso na Itália (eram os anos iniciais da década de 1970) e partiu para a Inglaterra; mais tarde muda-se para a Bélgica. Nunca mais voltou à Itália (nem mesmo quando seu pai morre) e mantém alguma comunicação com a família e com dois ou três amigos.
Em Leeds, ainda na Inglaterra, Michele se casa com uma americana nada atraente (atraiu-o sua inteligência, ele afirma), mais velha do que ele, com dois filhos, e depois de oito dias já estão separados. Quer dizer, Michele age sem pensar muito, é impulsivo; aos nossos olhos ele é a ovelha negra da família. Mas não é assim tratado pela mãe e irmãs, que o ajudavam a se manter no exterior e sobretudo o amavam, claro. Embora, no final, uma das irmãs comece a pensar que muito do comportamento do irmão, seu modo de agir, seria assim porque Michele seria homossexual. Ou bissexual, sabe-se lá, já que podia ser o pai do bebê da personagem Mara, como alguns acreditam.
Exceto por uns poucos capítulos em forma de narrativa, ficamos conhecendo a história de Michele, de sua família e de alguns amigos especialmente através de numerosas cartas que ele recebe ou escreve e outras tantas que os demais personagens trocam entre si. Adriana é a mãe de Michele, Angelica e Viola, suas irmãs, Osvaldo, um amigo e Mara, uma amiga muito doida. As loucuras de Mara, que tem um filho recém-nascido e nem sabe direito quem é o pai (pode ser Michele ou um outro amigo de ambos), vive aos trancos e barrancos, é bonita e não gosta de trabalhar, um pouco trambiqueira e escandalosa, trazem um pouco de humor para o livro, sem o que ele poderia se tornar tedioso, pelo menos para alguns leitores, já que é bastante melancólico.
Mara é engraçada mas não é feliz; nenhuma das mulheres da família de Michele parece ser feliz, então Tolstoi tem mesmo razão quando diz (em Anna Kariênina) que cada família infeliz o é a sua maneira, como nos mostra Natalia Ginzburg. Ela tem muita habilidade para escrever sobre a vida familiar e as mulheres, não apenas sobre seus dramas, mas com muitos detalhes sobre roupas, cabelos, sapatos, decoração etc., coisas que não nos interessam tanto assim (a nós, homens), ainda que algumas infomações sejam úteis para se conhecer o período em que a história se desenrola etc. (No filme tudo parece muito brega, especialmente as roupas usadas por Mara).
Desse modo, a amiga doida de Michele, a espalhafatosa Mara, adquire uma importância enorme na história, tanto que ficamos sabendo muito mais a respeito dela do que do próprio Michele. O mesmo ocorre no filme de Monicelli, onde o personagem principal nos é mostrado uma única vez, numa foto de seu casamento inglês, sem que seja possível vê-lo com clareza. Já a exuberante Mara (interpretada por Mariangela Melato) domina o filme desde a primeira vez em que aparece até seu final. O mundo (de Ginzburg) é mesmo das mulheres...
Lido entre 10 e 23/08/2018.