Konshal 23/07/2023
A melhor referência para uma profissão
Inglaterra, século XI. Era uma péssima época para crianças ficarem órfãs, o que não quer dizer que isso não acontecia a todo instante. E esse foi justamente o caso de Robert Jeremy Cole aos nove anos de idade. Mesmo que até então ele fosse o “responsável” por cuidar de seus irmãos mais novos, ser oficialmente uma criança sem pais tornava tudo mais difícil. Um alvo extremamente fácil e cobiçado para a crueldade humana que imperava na época, o que acabaria culminando na exploração de trabalho infantil ou na utilização desses seres inocentes como escravos sexuais.
A sorte de Rob J. foi encontrar Barber, um homem que também já fora um órfão e que hoje ganhava a vida visitando vilarejos ingleses a bordo de sua carruagem, levando um pouco de entretenimento, entregando medicamentos batizados de origem duvidosa e praticando medicina rudimentar aos seus moradores. Diante de todos esses aspectos, Barber era o mais próximo que Rob J. iria encontrar de uma figura paterna na vida.
Absorvendo aos poucos o conhecimento de seu novo tutor, Rob J. foi desenvolvendo suas habilidades e foi alimentando aquele que é o mote principal de O Físico: o seu fascínio pela atividade médica, uma vez que o ‘físico’ do título (ou The Physician, no original) era como se chamavam os médicos da corte na Idade Média. Além de sua curiosidade genuína, o garoto também tinha um “dom” (sobrenatural?) de prever a morte de alguém através do tato. Algo muito útil a ser utilizado junto aos serviços prestados por Barber.
Considero essa parte inicial de O Físico muito cansativa e repetitiva. A escrita de Noah Gordon em certos momentos também não torna esses momentos mais atrativos ao leitor. Uma história picotada com muitos personagens que não duram mais que alguns parágrafos e que acaba não prendendo a nossa atenção. A leitura fica toda truncada.
Quando Rob J. vê frustradas as suas tentativas de aprender os ofícios médicos na Inglaterra e o seu interesse crescente é renovado ao tomar conhecimento das maravilhas de uma escola de medicina localizada na Pérsia, a história passa a melhorar gradualmente. Impossível não se entusiasmar com a obstinação demonstrada por Robert J. durante as imensas caravanas que atravessam toda a Europa a partir do solo inglês em direção ao Oriente Médio. Uma viagem que ele sustenta com tudo aquilo que aprendeu com Barber. A tenacidade do agora jovem adulto Rob J. é visível na sua gana em aprender um novo idioma, o parsi; quando põe de lado o seu emocional a não querer assumir, num primeiro momento, o seu amor por Margareth Cullen ou quando resolve abandonar todas as suas (poucas) crenças (e identidade) ao decidir assumir e dominar todos os rituais de uma nova religião. Aqui, Rob foi perspicaz. Afinal, a rede de suporte oferecida pelos judeus aos seus pares seria de enorme valia para alcançar o seu sonho.
Quem deixa Londres é Robert Jeremy Cole, mas quem chega a Ispahan é Jesse ben Benjamin. Para alguém sem condições, natural a necessidade de um pouco de sorte para que (o agora) Jesse seja aceito na nova sociedade e conquiste seu espaço e reconhecimento na aclamada escola de medicina de Ispahan - tanto entre seus alunos (representados pelas fortes amizades criadas com Mirdin e Karim), quanto entre seus docentes ao ser um aluno admirado por Ibn Sina e Al-Juzjani. Estes dois últimos, os únicos dois personagens reais da história. Mas o seu maior golpe de sorte foi, sem dúvida, cair nas graças do Ala Xá. Não há ninguém melhor para mudar a sua vida da noite para o dia do que um monarca local (e sua valiosa calaat). E cá entre nós: Rob J. merecia tudo isso.
Entre intrigas políticas, conflitos armados e doenças misteriosas, Rob J. foi aprofundando seus conhecimentos médicos e aperfeiçoando as suas práticas clínicas, nem que para isso fosse preciso quebrar alguns tabus religiosos que teimavam em atrapalhar a evolução da Medicina. Rob J. em O Físico é um dos exemplos mais lindos que uma profissão poderia ter na ficção. É de deixar qualquer um orgulhoso!