Raphael 26/12/2020"O mais belo texto erótico da língua portuguesa"O mais belo texto erótico da língua portuguesa - teria dito o escritor português Almeida Faria a respeito de "A Casa da Paixão", de Nélida Piñon. A plataforma ficcional do erotismo feminino - teria considerado a escritora estadunidense Toni Morrison, segundo relata a autora em uma recente entrevista.
O próprio título do livro - "A casa da paixão" - é uma metáfora sobre o corpo feminino. Um texto erótico, sim, mas de um erotismo mediado por uma poética carregada de símbolos e metáforas, que subverte o que a autora uma vez chamou de "sintaxe bem-comportada". Não vou mentir. Não é uma leitura fácil. Eu diria até que foi a leitura mais desafiadora do ano e eu mesmo sinto que há diversas passagens cujo sentido eu não alcancei ou não estou seguro de tê-las interpretado adequadamente. Seguramente demandará novas leituras.
Em linhas gerais, "A Casa da Paixão" conta a história de Marta, uma jovem enfrentando um ritual de passagem, qual seja o da descoberta do próprio corpo, da própria sexualidade, do desejo. Órfã de mãe desde cedo, Marta é criada por uma ama, de nome Antônia, e pelo pai - um homem torturado por desejos incestuosos em relação à própria filha e que, não podendo tê-la, vive a persegui-la e a tiranizar-lhe a existência. Marta, no entanto, não se dobra aos desígnios do pai. Rebela-se e decide que não se sujeitará ao homem escolhido pelo pai, nem aceitará que este determine o seu destino. Diz a certa altura: "Odeio os homens desta terra, amo os corpos dos homens desta terra, cada membro que eles possuem e me mostram, para que eu me abra em esplendor, mas só me terão quando eu ordenar."
Em certa medida, "A Casa da Paixão" é um grito em favor da libertação da mulher, a proclamar a legitimidade do desejo sexual e da relação desta com o próprio corpo, tradicionalmente atrelada, no contexto de uma cultura judaica-cristã, ao signo do pecado, do profano. Aliás, tenho a impressão de que a narrativa parece redesenhar as fronteiras entre o sagrado e o profano, sacralizando o sexo, a comunhão ritual que se realiza no altar do corpo, rejeitando a introjeção da culpa pela religião em favor da aceitação de um impulso natural.
Por fim, destaco: não é à toa que este texto foi publicado no contexto de uma coleção intitulada "Mestres da Literatura Brasileira e Portuguesa". Nélida Piñon merece mesmo este destaque, compondo o panteão dos maiores escritores da língua portuguesa. Gênio!